Correio Braziliense, n. 20655, 11/12/2019. Mundo, p. 12

Fernández estende as mãos para o Brasil
Rodrigo Craveiro


Não apenas nas palavras, mas também nos gestos, Alberto Fernández procurou enviar uma mensagem de simplicidade e de unidade aos 44,6 milhões de argentinos e aos vizinhos da América do Sul, principalmente o Brasil. Antes mesmo de receber a faixa presidencial e o bastão das mãos do direitista Mauricio Macri, o peronista chegou ao Congresso da Nação da Argentina dirigindo o próprio carro. Depois, empurrou a cadeira de rodas de Gabriela Michetti, vice-presidente de Macri. Já como 57º presidente da Argentina, Fernández fez um discurso longo e conciliador. Propôs um pacto social com toda a nação; defendeu o fortalecimento do Mercosul; e estendeu as mãos para o Brasil, apesar de reconhecer divergências pessoais com o colega Jair Bolsonaro (leia na página 13). “Desde a humildade e a esperança, venho convocar à unidade de toda a Argentina, em um novo contrato social. Que seja fraterno, pois chegou a hora de abraçar o diferente. Convoco, sem distinções, para colocar a Argentina de pé, rumo ao desenvolvimento com justiça social”, declarou. À tarde, anunciou as primeiras medidas efetivas: intervenção na Agência Federal de Inteligência, reforma na Justiça Federal e a aplicação de fundos para um plano contra a fome.

Em seu pronunciamento, Fernández acenou com a construção de uma “agenda ambiciosa e criativa” com o Brasil, nos setores tecnológico, produtivo e estratégico. Tal agenda, segundo ele, estará “respaldada pela irmandade histórica de nossos povos” e deverá ir mais além de algumas “diferenças pessoais daqueles que governam de acordo com a conjuntura”. O novo chefe de Estado prometeu honrá-la e avançar, com o Brasil, na busca de um progresso compartilhado. Acompanhado da vice — a ex-presidente Cristina Kirchner —, Fernández sugeriu uma integração do país à globalização, com “inteligência”. “Nessa globalização, sentimos a América Latina como um lugar comum. Vamos fortalecer o Mercosul e a integração regional”, declarou.

No âmbito doméstico, os desafios do novo governo de centro-esquerda serão reduzir a pobreza e negociar uma dívida de US$ 57 bilhões com o Fundo Monetário Internacional (FMI). “É impossível pagar a dívida externa se não houver crescimento. Queremos ter uma boa relação com o FMI, mas, sem crescimento, não podemos pagar”, disse, reconhecendo um possível calote.

Ponto morto

Em entrevista ao Correio, Fernando Domínguez Sardou, cientista político da Pontifícia Universidade Católica da Argentina, alertou que as relações entre Argentina e Brasil começam do ponto morto. “O discurso de Fernández, assim como foi conciliador em múltiplos sentidos da política doméstica, também se mostrou em relação ao exterior e, particularmente, ao Brasil. Os apelos ao Mercosul e a alianças econômicas e comerciais, bem como a uma agenda comum, podem ser o primeiro passo rumo ao degelo das relações bilaterais”, explicou.

Ele acredita que a presença do general Hamilton Mourão, vice de Bolsonaro, pode ser compreendida dessa forma. “Embora o ponto de partida planejado por Fernández seja o contrário da proposta de Bolsonaro, fazer menções públicas significa um esforço diplomático inicial de aproximação. Os próximos dias, sem dúvida, refletirão com maior precisão a agenda conjunta e os esforços de Argentina e Brasil para redirecionar suas relações bilaterais”, disse Sardou.

Prioridades

De acordo com o especialista, o discurso de posse de Fernández oferece um vislumbre das prioridades do novo governo. Sardou aponta a forte ênfase nas questões alimentares e a clara mensagem aos mercados em relação à pretensão de reestruturação da dívida pública como pontos cruciais da política socioeconômica de Fernández e Kirchner. “Causaram-me surpresa menções à educação e ao uso da pauta publicitária oficial com fins educativos. Também ficaram evidentes a busca de acordos e o caráter conciliador”, afirmou. Durante o pronunciamento, Fernández citou ex-presidentes de distintos matizes políticos. “Além disso, o desconhecimento prévio, por parte de Cristina Kirchner, do conteúdo do discurso indica tom de independência e de distância em relação ao kirchnerismo clássico”, avaliou Sardou.

A solenidade de posse reuniu poucos chefes de Estado da América Latina. O Uruguai destoou dos demais e enviou quatro representantes: o presidente, Tabaré Vázquez; o recém líder eleito, Luis Lacalle Pou; e o ex-presidente José “Pepe” Mujica com a esposa, a senadora e atual vice, Lucia Topolansky. O Paraguai esteve representado pelo mandatário, Mario Abdo Benítez, e pelo ex-presidente Fernando Lugo, deposto em 2012. Cuba marcou presença com o líder, Miguel Díaz Canel, e o chanceler, Bruno Rodríguez Parrilla. A festa democrática prosseguiu na Praça de Maio, com apresentações musicais.

Eu acho...

“Embora tenha forte caráter conciliatório com a totalidade do arco político e com os problemas de política externa que parecem surgir, o discurso do presidente Alberto Fernández partiu de uma profunda crítica à gestão de Mauricio Macri, especialmente na economia, saúde, educação e política social.”

Fernando Domínguez Sardou, cientista político da Pontifícia Universidade Católica da Argentina

Bastidores

Símbolo do poder...

A pedido do próprio Alberto Fernández, o ourives Juan Carlos Pallarols inscreveu no bastão presidencial a frase “A Argentina de pé”. O objeto, símbolo do poder e do comando do país, mede 93cm, é feito de madeira urunday e foi produzido à mão. Com empunhadura e ponteira prateadas, leva o desenho de 24 flores, uma para cada província e para a cidade de Buenos Aires. Três botões representam as ilhas do Atlântico Sul. A borda do escudo foi fabricada com material das Malvinas e banhada a ouro.

…e da diversidade

Estanislao Fernández, filho único do novo presidente da Argentina, ostentou no bolso esquerdo um lenço dobrado com as cores do arco-íris, o símbolo da luta LGBT. Aos 24 anos, Estanislao é drag queen e cosplayer. No Instagram, atende pelo nome de Dyzhy. Sempre discreto, se mostra avesso a entrevistas. Ex-estudante em um colégio católico, ele namora há três anos uma mulher, Natalia Leone. “Minha relação com Natalia é a minha primeira mais longa. Antes, tive relações com homens, mas duraram pouco — eram semanais. Natalia é realmente o amor da minha vida”, comentou.

Cara de poucos amigos

Ficou claro o mal-estar entre o agora ex-presidente argentino Mauricio Macri e Cristina Kirchner. A vice de Fernández mostrou indiferença em relação ao direitista. Até estendeu uma das mãos para Macri, mas evitou trocar olhares. A “Senhora”, como é chamada a senadora, também se negou a segurar a caneta com a qual Fernández e Macri assinaram o termo de posse.

Vizinhos presentes

O ex-presidente e senador eleito do Uruguai Jose “Pepe” Mujica viajou a Buenos Aires para a posse de Alberto Fernández, acompanhado da mulher, a atual vice-presidente do país, Lucia Topolansky. A presença do ex-guerrilheiro esquerdista quase foi ofuscada pelo fato de o chefe de Estado Tabaré Vázquez ter comparecido à cerimônia acompanhado de seu sucessor, Luis Lacalle Pou. Ambos, inclusive, foram flagrados trocando um aperto de mãos.

TRECHOS/ O discurso de posse

América do Sul

“Têm crescido na região movimentos autoritários. Têm havido golpes de Estado e, ao mesmo tempo, crescentes reivindicações dos cidadãos contra o neoliberalismo. A Argentina elevará seus princípios de paz, de democracia e da plena aplicação dos direitos humanos.”

Brasil

“No Brasil e com o Brasil, temos de construir uma agenda ambiciosa e criativa, no tecnológico, no produtivo e no estratégico, que esteja respaldada pela irmandade histórica de nossos povos e que vá mais além de algumas diferenças pessoais daqueles que governam de acordo com a conjuntura. Nós a honraremos, avançaremos, juntos, na construção do progresso compartilhado.”

Contrato social

“Desde a humildade e a esperança, venho convocar à unidade de toda a Argentina, em um novo contrato social. Que seja fraterno, pois chegou a hora de abraçar o diferente. Convoco, sem distinções, para colocar a Argentina de pé rumo ao desenvolvimento com justiça social.”

Corrupção

“Queremos que não exista a impunidade. Nem para um funcionário nem para quem o corrompe.”

Dívida externa

“A nação está endividada como um manto de instabilidade que descarta qualquer capacidade de desenvolvimento e que deixa o país refém dos mercados internacionais. (…) Agora, não há ninguém tomando a dívida argentina nem ninguém que possa pagá-la. A Argentina está em um default virtual, escondido.”

Economia

“Decidi que não daremos tratamento parlamentar ao orçamento apresentado pelo governo de saída: os números não refletem as realidades da economia, as necessidades sociais e os compromissos sociais assumidos.”

Justiça

“Sem uma Justiça independente não existe república nem democracia. (…) Temos visto perseguições indevidas e detenções arbitrárias induzidas por aqueles que governam e silenciadas por certa complacência da mídia. Nunca mais uma Justiça contaminada por serviços de inteligência.”

Malvinas

“Reclamaremos a soberania sobre as Malvinas, sabendo que nos acompanham os povos da América Latina, sabendo que o diálogo e a paz são o caminho.”

Mercosul e globalização

“Em um contexto internacional convulsionado, a Argentina não deve se isolar, mas se integrar à globalização; porém, com inteligência. Preservando a produção e o trabalho nacional. (…) Nessa globalização, sentimos a América Latina como um lugar comum. Vamos fortalecer o Mercosul e a integração regional.”

Pobreza

“Necessitamos que toda a Argentina, unida, ponha um freio a esta catástrofe social. Um de cada dois meninos e meninas é pobre em nosso país. Sem pão, não há presente nem futuro. Sem pão, a vida só é sofrida. Sem pão, não há democracia ou liberdade.”