Correio Braziliense, n. 20712, 06/02/2020. Mundo, p. 12

Capital político para a reeleição

Rodrigo Craveiro


 

Absolvido. À exceção de uma surpreendente traição nas fileiras do Partido Republicano, tudo saiu conforme o roteiro no julgamento político mais importante das últimas décadas. O Senado, de maioria governista, inocentou Donald Trump do crime de abuso de poder por 52 votos a 48 e fortaleceu o capital político do presidente para a reeleição, em 3 de novembro. O senador republicano Mitt Romney cumpriu a promessa anunciada minutos antes do início da votação e se uniu aos democratas, ao optar pela condenação do magnata no primeiro artigo de impeachment. Ao apreciarem o segundo artigo, em relação à acusação de obstrução de Justiça, 53 republicanos votaram pela absolvição de Trump e 47 pela condenação.

A reação de Trump à absolvição foi bem-humorada e rápida. Em seu perfil no Twitter, ele publicou uma montagem com a capa da revista Time em que aparecem várias placas com o seu nome e os próximos quadriênios, uma menção a futuros mandatos. A partir de 2048, surgem fotos de Trump com semblantes diversos. Ao fim, aparece a mensagem “Trump 4Eva” (“Trump para sempre”). “Farei um pronunciamento público amanhã (hoje), ao meio-dia, na Casa Branca, para discutir nossa vitória do país sobre a fraude do impeachment!”, acrescentou, em uma segunda publicação. Em comunicado à imprensa, a porta-voz da Casa Branca, Stephanie Grisham, citou que a votação no Senado representou a “defesa total e a isenção “ do presidente.

Horas depois de ser flagrada rasgando o que seria o discurso do Estado da União, proferido por Trump na noite de terça-feira, a democrata Nancy Pelosi — presidente da Câmara dos Deputados — declarou que o magnata “permanece como uma ameaça à democracia americana”. “O presidente se gabará da absolvição. Não pode existir absolvição sem um julgamento, e não existe julgamento sem testemunhas, documentos e evidências. Ao suprimir as evidências e ao rejeitar os elementos mais básicos de um processo judicial justo, o Senado republicano se fez cúmplice do acobertamento do presidente”, alfinetou. Ela denunciou um “ato de ilegalidade” orquestrado pelo senador Mitch McConnell, “um desonesto do Senado que covardemente abandonaria o seu dever de defender a Constituição”.

“Erro colossal”

Líder da maioria republicana na casa, McConnell se disse desapontado e surpreso com o voto de Romney. “É um perdedor político para eles”, disse, referindo-se aos democratas. “Eles começaram (o impeachment), acharam que seria uma ótima ideia e, pelo menos a curto prazo, foi um erro político colossal”, disse. Por sua vez, Chuck Schumer, líder da minoria democrata, considerou que a absolvição de Trump “virtualmente não possui valor”, já que os republicanos se negaram a ouvir testemunhas.

A “traição” de Romney contra Trump teve peso histórico: foi a primeira vez, nos três processos de impeachment, em que houve um voto bipartidário de condenação. A senadora republicana Susan Collins afirmou que o presidente “aprendeu a lição” e “será muito mais cauteloso no futuro”. Allan Lichtman, especialista em história política pela American University (em Washington) e um dos primeiros a preverem um processo de impeachment contra o magnata, descarta essa possibilidade. “Collins está profundamente errada. Trump não será castigado e não mudará de atitude depois dessa absolvição. Pelo contrário, será encorajado a continuar usando o poder e a autoridade únicos para trapacear nas eleições deste ano”, advertiu ao Correio. “Não tenho dúvidas de que ele tornará a acolher e a explorar a intervenção russa no processo eleitoral.”

Professor de direito da Universidade Estadual de Ohio, Joshua Dressler também aposta que a absolvição encorajará Trump. “Ficou claro, antes e durante o processo de impeachment, que os republicanos em cargos de poder têm medo de se voltarem contra o presidente. Então, ele sabe que está protegido enquanto os republicanos permanecerem no controle do Senado”, disse à reportagem. Dressler destaca o fato de vários democratas terem votado a favor da condenação de Trump, embora esses votos sejam contrários aos melhores interesses desses políticos — principalmente senadores democratas de Alabama, Montana e Virgínia Ocidental. “Este é um sinal de que alguns senadores se dispuseram a colocar o próprio futuro eleitoral em grande risco para agir com base no que eles acreditavam ser o voto constitucionalmente adequado”, explicou.

Em relação ao voto de Romney, Dressler acredita que o senador percebe sua imensa popularidade no estado de Utah e sente não correr perigo de perder o assento no Capitólio. “Eu acho que Romney expressou consciência religiosa. Fez o que achava certo”, comentou o professor de Ohio. Mais cedo, ao anunciar o seu voto, Romney afirmou que “o presidente é culpado de um abuso chocante da confiança pública”. “Corromper uma eleição para se manter no poder talvez seja a violação mais abusiva e destrutiva do juramento ao cargo de alguém que eu possa imaginar”, advertiu.

Guarda de honra para Guaidó e recepção às portas da Casa Branca

O presidente dos EUA, Donald Trump, recebeu, na Casa Branca, Juan Guaidó — opositor autoproclamado chefe de Estado da Venezuela. Na véspera, durante o discurso do Estado da União, o republicano o apresentou como “o presidente verdadeiro e legítimo” da Venezuela e prometeu “esmagar” a tirania de Nicolás Maduro. Guaidó foi aplaudido de pé por republicanos e democratas. A reunião de ontem, carregada de simbolismos, ocorreu às  14h15 (16h15 em Brasília), quando Guaidó foi recebido por Trump às portas da Casa Branca, escoltado pela guarda de honra. “A visita é uma oportunidade para reafirmar o compromisso dos EUA com o povo da Venezuela e discutir como trabalhar com o presidente Guaidó para acelerar uma transição democrática”, afirmou a Casa Branca. O regime de Maduro acusou o americano de lançar “ameaças violentas” à Venezuela. “Trump ofende e desrespeita o povo venezuelano, fazendo ameaças violentas contra sua integridade e contra o governo constitucional, legítimo e democrático do presidente Maduro”, disse o chanceler, Jorge Arreaza.

Pontos de vista

Por Allan Lichtman

Um voto importante

“Não fiquei surpreso com o voto do senador Mitt Romney. Ele é um homem de consciência, não de partidarismo. Como ele próprio reconheceu, os deputados que desempenharam o papel de promotores no julgamento claramente  provaram que o presidente abusou abertamente de seu poder, pressionando a Ucrânia a iniciar uma investigação falsa de seu adversário político. O voto de Romney é muito importante.”

Especialista em história política pela American University (em Washington)

Por Joshua Dressler

Números apertados

“A absolvição de Trump foi garantida desde o começo. No entanto, é digno de nota que o senador Romney tenha votado pela condenação na acusação de abuso de poder. É a primeira vez na história dos Estados Unidos que um senador do mesmo partido do presidente vota pela condenação. Embora seja necessária uma maioria de dois terços para a absolvição, se alguém pensar no fato de que os votos foram 52 a 48 e 53 a 47, trata-se de uma votação excepcionalmente apertada.”

Professor de direito da Universidade Estadual de Ohio

Lições do julgamento/ As principais consequências do impeachment de Donald Trump

Um país dividido em dois

» O julgamento do escândalo envolvendo a suposta pressão de Trump para que a Ucrânia investigasse o democrata Joe Biden e o filho Hunter por denúncias de corrupção ilustrou a profundidade das diferenças partidárias no Congresso, mas também as que dividem os americanos sob a administração pouco ortodoxa do magnata imobiliário. Para os democratas, Trump é um líder perigoso, que acredita estar acima da lei. Para os republicanos, é vítima de uma campanha orquestrada por seus inimigos para impedir a reeleição. Segundo as pesquisas, quase metade dos americanos deseja que Trump seja expulso da Casa Branca, opinião de 85% dos eleitores democratas e 10% dos republicanos.

Republicanos alinhados

» Trump ganhou a eleição republicana em 2016. Apesar da rejeição aberta de alguns membros desse partido, hoje tem o total controle de suas tropas, às quais exige lealdade absoluta. Em sua conta no Twitter, sua arma favorita, retribui elogios àqueles que o defendem e critica os dissidentes. No Congresso, o líder da maioria republicana no Senado, Mitch McConnell, é seu aliado e mantém os legisladores do partido alinhados. Embora dois senadores republicanos tenham votado a favor de chamar testemunhas, o que teria prolongado o julgamento, o lado de Trump finalmente venceu, deixando de lado o testemunho de pessoas como o ex-assessor John Bolton.

Instituições danificadas

» A polarização está prejudicando o trabalho do Congresso. Desde que os democratas recuperaram o controle da Câmara dos Deputados em 2019, centenas de leis aprovadas por esse órgão foram suspensas pelo Senado, de maioria republicana. O impeachment apenas intensificou ainda mais a situação, o que deixa qualquer acordo entre democratas e republicanos como algo praticamente impossível. Segundo a senadora republicana Lisa Murkowski, que acredita que o comportamento do presidente estava errado, isso impediu que o julgamento de Trump fosse justo. “Me entristece dizer que, como instituição, o Congresso fracassou”, afirmou.

Schiff, grande orador

» Adam Schiff, promotor chefe do julgamento, cativou os parlamentares por horas com seus detalhados e habilidosos discursos sobre o que ocorreu no escândalo, acrescentando expressividade teatral. Em uma de suas últimas exposições, Schiff afirmou que Trump deveria ser retirado de seu cargo “porque o que é certo importa e a verdade importa. Caso contrário, estamos perdidos”, disse. Até o senador Lindsey Graham, defensor radical de Trump, disse que Schiff fez “um bom trabalho”.