Correio Braziliense, n. 20656, 12/12/2019. Mundo, p. 14

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Rodrigo Craveiro


Em seu primeiro dia na Casa Rosada, o presidente peronista da Argentina, Alberto Fernández, mostrou que tem pressa para resolver a crise no país e anunciou que enviará à Câmara dos Deputados, na próxima segunda-feira, três projetos de lei que visam declarar emergências econômica, social e sanitária. De acordo com o jornal La Nación, o Executivo espera sancionar as medidas até o dia 18. As sessões do Legislativo serão convocadas em caráter extraordinário. A oposição reagiu à decisão com reticências e expressou o temor de Fernández incorporar superpoderes. Com a emergência econômica, que vigorou no país de 2002 a 2018, o presidente teria as faculdades de modificar impostos e realocar orçamentos. Os indicadores financeiros e sociais sugerem a complicada missão que Fernández e sua vice, Cristina Kirchner, terão pela frente. A economia enfrentou um desaquecimento de 3,1% em 2019, a inflação superou os 50% e quase 40% da população são afetados pela pobreza.

Fernández tornou realidade uma promessa feita durante o discurso de posse, na véspera. “Vamos implementar um sistema massivo de créditos não bancários que possibilite empréstimos a taxas baixas”, disse, na terça-feira, durante a solenidade no Congresso da Nação da Argentina. Daniel Arroyo, ministro do Desenvolvimento Social, explicou ontem que os microcréditos contemplarão 40% da população e terão juros anuais de 2% a 3%. A medida é voltada, principalmente, para a compra de insumos de profissionais liberais, como costureiras, carpinteiros, encanadores, entre outros.

Raúl Aragón, diretor do Programa de Estudos de Opinião Pública na Universidad Nacional de la Matanza (em San Justo, Argentina), afirmou ao Correio que a fome e a pobreza são as demandas mais urgentes. “A sociedade argentina tem de se concentrar nisso. Trata-se do critério central de Alberto Fernández, mais do que as reformas econômica e judiciária”, comentou. “Na essência, a visão de Alberto se mostra humanista. Ele também deve adotar a lei de emergência alimentar, votada alguns meses atrás pelo Parlamento e jamais executada. “Fernández tem à sua disposição 20 bilhões de pesos (cerca de R$ 1,3 bilhão) para atender à emergência alimentar. Além da declaração de emergência econômica, ele prometeu um pacote de leis para reformular a Justiça Federal”, acrescentou.

Segundo ele, o peronista também deve aumentar a pensão mínima dos aposentados e disponibilizar gratuitamente medicamentos para essa categoria. “O sistema de créditos não bancários fomentará pequenas e médias empresas, as chamadas Pymes, e vai recuperar muitas que pediram falência.”

Demanda

Por sua vez, Miguel Boggiano — CEO da Carta Financera (em Buenos Aires) e professor de mestrado em finança pela Universidad de San Andrés (em Victoria, província de Buenos Aires) — explicou à reportagem que todos os incentivos propostos por Fernández têm a ver com estímulo à demanda. Ele prevê que o peronista ordenará a impressão de mais pesos argentinos para aumentar o valor das aposentadorias, do salário mínimo e dos gastos sociais. “É óbvio que isso terá efeito inflacionário. Imagino que Fernández esteja disposto a correr esse risco, se isso significar a reativação da economia”, analisa. Boggiano espera pelo êxito do novo governo em um prazo muito curto. “Se começar a imprimir uma quantidade monstruosa de pesos, o argentino tem muita aptidão em identificar injeções monetárias espúrias. Algo chamado de ilusão monetária.”

A tarefa de impulsionar a economia a economia caberá a Martín Guzmán, um acadêmico de 37 anos colaborador do prêmio Nobel Joseph Stiglitz, conhecido por sua posição antiglobalização. Desde 2018, a Argentina mantém um acordo de ajuste fiscal com o Fundo Monetário Internacional (FMI), que concedeu um empréstimo de US$ 57 bilhões, dos quais já desembolsou US$ 44 bilhões. Fernández admitiu que não pretende receber a última parcela do empréstimo e avisou que o pagamento da dívida deve ocorrer sob a condição de a Argentina “crescer primeiro”.

As primeiras medidas

As ações iniciais de Alberto Fernández à frente da Casa Rosada

Microcréditos

» O Ministério do Desenvolvimento Social concederá microcréditos a profissionais liberais, como carpinteiros, encanadores, gasistas, entre outros. As taxas de juros serão baixíssimas, entre 2% e 3% ao ano. O objetivo é desendividar famílias, que têm buscado créditos a juros anuais de 200%.

Reforma judiciária

» O presidente  Alberto Fernández espera reformular a Justiça, a qual acusa de não ter independência em relação ao poder político. Ele enviará ao Congresso um projeto nesse sentido, também com o objetivo de coibir perseguições políticas.

Inteligência

» O governo peronista pretende intervir na Agência Federal de Inteligência (AFI). A ideia, segundo Fernández, é impulsionar uma reestruturação de todo o sistema de inteligência e de informação estratégica do Estado.

Emergência alimentar

» A Casa Rosada contará com um aumento de fundos previstos pela lei de emergência alimentar. Em 2020, haverá uma liberação de 40 bilhões de pesos (cerca de R$ 2,7 bilhões) — em 2019, foram 27 bilhões (ou R$ 1,8 bilhão). Parte dos fundos reservados à AFI também será aplicado na luta contra a fome.

Poder aos filhos da ditadura

Alberto Fernández nomeou para o seu gabinete três filhos de desaparecidos durante a ditadura militar na Argentina (1976-1983): o ministro do Interior, Eduardo Wado de Pedro (na foto, à direita); do Ambiente, Juan Cabandié; e Victoria Donda para o cargo de presidente do Instituto Nacional contra a Discriminação, a Xenofobia e o Racismo (Inadi). Eduardo de Pedro, 43 anos, é filho de Enrique De Pedro, estudante de direito e militante do grupo armado peronista Montoneros, que foi assassinado pela ditadura em abril de 1977; e de Lucila Révora, sequestrada e desaparecida em 1978. Juan Cabandié, 41, nasceu dentro da Escola Superior Mecânica da Marinha (Esma), o maior centro clandestino de detenção do regime militar. A advogada Victoria Donda também descobriu ter nascido na Esma em outubro de 2004.

Pontos de vista

Por Miguel Boggiano

A dívida é o problema

“Não se sabe muito sobre o tema da reforma da Justiça. Mais importante do que isso creio ser o plano de reestruturação da dívida argentina. Esse, sim, é um problema. O presidente Alberto Fernández está correto em afirmar que, antes de poder pagar a dívida, a economia argentina precisa crescer. A questão está em qual é a maneira de crescer. As medidas keynesianas que ele propõe são de curtíssimo prazo. No momento, não está claro como ele fará em relação à luta contra a fome. Por enquanto, trata-se apenas de expressões de boa vontade.”

CEO da Carta Financera (em Buenos Aires) e professor de mestrado em finanças pela Universidad de San Andrés (em Victoria, província de Buenos Aires)

Por Carlos Fara

Medidas paliativas

“O programa de microcrédito tem sido um projeto importante do ministro do Desenvolvimento Social, Daniel Arroyo. Basicamente, ele será voltado para a necessidade de atacar o tema da fome. Haverá uma reunião sobre o tema nos próximos dias. Algumas medidas são paliativas para aposentados e outros setores, com a intenção de reanimar a economia. O mês de dezembro é particularmente sensível para a Argentina. Não sabemos se haverá o início imediato de negociações com o Fundo Monetário Internacional, a fim de parcelar a dívida e reavaliar prazos. Isso é absolutamente essencial.”

Especialista em opinião pública e comunicação de governo. Participou de 140 campanhas eleitorais na Argentina e na América Latina

Por Raúl Aragón

Contrato inédito

“O presidente inicou o seu discurso com um marco teórico muito específico e exigiu novo contrato social, com base na cidadania social. Isso é muito interessante, pois os pactos sociais nunca tiveram a dimensão social. Eles se definem, fundamentalmante, pelas obrigações e direitos do Estado e dos cidadãos, e as relações entre o Estado e os cidadãos. Alberto Fernández pede um novo contrato social de solidariedade entre os cidadãos. É algo distinto. Ele pede uma solidariedade emergencial. Isso quer dizer que ele pede que todos renunciemos a algo, alguns em maior medida, outros em menor escala.”

Diretor do Programa de Estudos de Opinião Pública na Universidad Nacional de la Matanza (em San Justo, Argentina)