Correio Braziliense, n. 20656, 12/12/2019. Economia, p. 8

Câmara aprova nova lei do saneamento
Simone Kafruni


Depois de vários adiamentos, numa sessão marcada por reviravoltas, a Câmara dos Deputados finalmente votou, na noite de ontem, em segundo turno, por 276 votos a 124, com uma abstenção, o projeto de lei (PL) que altera o marco regulatório do setor de saneamento. A proposta abre espaço para a iniciativa privada atuar com mais força na exploração do setor e institui o regime de licitações aos municípios para a escolha das empresas que prestarão serviços de abastecimento de água, coleta e tratamento de esgoto. Até 2033, elas terão de garantir o atendimento de água potável a 99% da população e o de coleta e tratamento de esgoto a 90%.

Em vez do PL nº 3.261/2019, o que acabou aprovado foi o PL nº 4.162/2019, com teor semelhante, porém ainda em primeiro turno. Com a manobra, o texto terá de ir ao Senado e voltar para apreciação da Casa, que dará a última palavra antes da proposta ir à sanção presidencial. O movimento visa evitar que os senadores, mais ligados aos governadores, possam desidratar o texto, em favor das companhias estaduais.

A troca de textos no decorrer da sessão exigiu a apreciação dos destaques, que adentrou a noite, mas incorporou o texto do relator do PL 3.261/2019 na comissão especial, deputado Geninho Zuliani (DEM-SP). Para o presidente da Associação Brasileira de Concessionárias Privadas de Serviços Públicos de Água e Esgoto (Abcon), Percy Soares Neto, a troca de PLs preocupa o setor. “A discussão no Congresso vai se estender e atrasar ainda mais o início de um novo modelo de saneamento, que é o que vai trazer investimento em mais serviços para a população”, disse. “Aumenta o risco de mais mudanças, porque vai para o Senado e volta para a Câmara, e o texto está maduro.”

O ponto mais polêmico, nos dois projetos, é o fim dos contratos que são feitos sem licitação entre as estatais de saneamento e os municípios. A oposição teme que as cidades menos atrativas comercialmente fiquem sem o serviço, porque a iniciativa privada vai querer disputar os mercados maduros. Os parlamentares favoráveis argumentam que o setor precisa de investimentos urgentes, que só o setor privado teria como fazer.

Prazo

Segundo o Geninho Zuliani, será dado um prazo de transição para as empresas públicas, de 30 meses após a aprovação da lei, para que possam renovar os contratos com os municípios, antes de se adequarem ao novo marco legal, que passará a exigir concorrência.

A advogada Carolina Caiado, especialista em direito público do Cascione Pulino Boulos Advogados, considerou a aprovação do novo marco muito positiva, apesar de algumas ressalvas. “O serviço é tradicionalmente prestado por companhias estaduais, mas a competência do setor é dos municípios, que podem fazer suas próprias licitações. Isso já provocou muita judicialização por conta da titularidade do serviço. O que existe hoje são contratos de programa, sem licitação”, explicou.

“O novo marco estabelece metas de universalização, atualizando uma série de cláusulas, como exigir a conexão de todos os domicílios na rede de esgoto”, explicou Carolina. Para a especialista, as companhias públicas vão se manter no mercado, porque são muito grandes. “Antes, as estatais reinavam sozinhas, agora terão de  melhorar a eficiência para competir no mercado”, explicou.

Pelo cano

Enquanto é necessário investimento de 0,4% do PIB ao ano em saneamento, Brasil investe 0,2%

Água

Mais de 33 milhões de brasileiros não têm acesso à água potável no Brasil

» 83,47% dos brasileiros são atendidos com abastecimento de água tratada

» No Brasil, 14,3% das crianças e adolescentes não têm o direito à água garantido

» O consumo médio de água no país é de 153,5 litros por habitante/dia

» 110 litros/dia é a quantidade de água suficiente para atender às necessidades básicas

» A perda de água no sistema é 38,3%

» Os sistemas de distribuição desperdiçam mais de R$ 10 bilhões/ano, quase 7 mil piscinas olímpicas de água/dia

» Em 2016, as perdas financeiras na distribuição da água potável representaram R$ 10,5 bilhões, R$ 1 bilhão a menos do que todo o valor investido pelo setor (R$ 11,5 bilhões)

Esgoto

Apenas 58,04% da população tem acesso à coleta de esgoto

» Mais de 100 milhões de brasileiros não têm acesso ao serviço de coleta de esgoto

» Cerca de 13 milhões de crianças e adolescentes não têm acesso ao saneamento básico

» 3,1% (1,6 milhões) das crianças e dos adolescentes no Brasil não têm sanitário em casa

» Apenas 46% do esgoto produzido no país é tratado

» A média das 100 maiores cidades brasileiras em tratamento dos esgotos foi de 50,26%

» Somente 10 delas tratam acima de 80% de seus esgotos

» O Atlas do Esgoto da ANA aponta que mais de 110 mil quilômetros (km) de rios estão poluídos terem contato direto com esgotos

Proposta

Projeto de Lei (PL) nº 3261/2019 altera o marco legal do saneamento

» O PL permite a concorrência entre as estatais e a iniciativa privada por meio de licitação, ampliando a possibilidade investimentos no setor

» Atualmente, as companhias estatais estaduais têm contratos de programas com municípios, sem licitação

» As estatais alegam promover subsídio cruzado para prover água e esgoto em cidades pequenas onde a iniciativa privada não teria interesse comercial

» As concessionárias já existentes dizem que têm 6% do mercado e investem 20% do total

» Como é um setor de autonomia municipal, o PL também amplia as competências da Agência Nacional de Águas (ANA) para que atue junto aos órgãos municipais de fiscalização

Fontes: ANA, Instituto Trata Brasil, InterB Consultoria e PL 3261/2019