Correio Braziliense, n. 20631, 17/11/2019. Política, p. 2

Extinção ou autonomia, o dilema dos municípios

Augusto Fernandes
Cristiane Noberto


Joana da Rocha, 67 anos, e Welisvânia Vieira, 42, moram no interior de Goiás. Separadas por quase 233km, as duas vivem realidades totalmente distintas. Enquanto a primeira, moradora de Mimoso, lamenta a precariedade de alguns serviços públicos da sua cidade, a segunda, residente de Gameleira, comemora o fato de não precisar se deslocar a um município vizinho para buscar atendimento médico, por exemplo. A disparidade faz com que as conterrâneas tenham opiniões diferentes em relação ao futuro dos locais onde vivem.

“Se for para voltar a ser distrito de Padre Bernardo, vou com os pés e as mãos amarradas. Lá tem hospital, um supermercado melhor, banco… Tudo é mais fácil”, desabafa Joana, cidadã mimosense. “Se você vir uma “ daqui de 20 anos atrás e comparar com agora, é outra cidade. Caminhou-se tanto para chegarmos onde estamos, e vamos retornar à estaca zero?”, rebate Welisvânia, de Gameleira.

A situação de Joana e Welisvânia é reflexo do cenário de outras 1.215 cidades do país, segundo a Confederação Nacional dos Municípios (CNM), que correm o risco de perder a emancipação devido a uma das propostas do pacto federativo do governo federal que pretende extinguir as cidades com menos de 5 mil habitantes e arrecadação própria inferior a 10% da receita total .

Na semana passada, o Correio visitou os municípios goianos, que integram a lista. A reportagem constatou dois extremos: enquanto existem moradores que não abrem mão da independência da sua cidade, há quem veja de forma positiva a eventual incorporação a um município vizinho.

A situação ocorre principalmente devido à forma como a população percebe o investimento feito pelo poder público dentro da cidade. Faz pouco mais de uma década que Joana mora em Mimoso. A chegada ao município coincidiu com o período em que a catadora de materiais recicláveis foi diagnosticada com hipertensão. Desde então, tratar a doença tem sido motivo de angústia para ela. Sem plano de saúde e refém de um serviço público local limitado a apenas uma unidade básica de saúde, não é raro que ela tenha de percorrer 18km até a cidade mais próxima, Padre Bernardo, em busca de atendimento. Isso, quando ela consegue carona.

“Aqui, não tem condução que faça o trajeto entre as duas cidades. Só tem ônibus três vezes por semana — domingo, segunda e sexta —, que vão para Brasília. Tirando isso, dependemos da boa vontade dos vizinhos que têm carro para oferecer carona. Sem contar que há alguns que cobram R$ 50 para nos levar. E não é só quando precisamos de atendimento médico. Se quisermos ir à delegacia ou a um mercado com mais opções, não tem jeito: é Padre Bernardo”, explica.

Assim como Joana, o também catador de materiais recicláveis e marido dela, Raimundo Oliveira, 56, reclama que, por mais que Mimoso seja emancipado, o município é bastante dependente de Padre Bernardo. Questionado sobre o que falta na cidade, ele não hesita em responder. “Tudo. Se a gente adoecer, tem que ir para o hospital de lá. Se quiser ir ao banco, tem que ir para lá, com ou sem carona. Poderiam colocar algum meio de locomoção. Não precisava nem ser um ônibus, mas uma van. Aqui, é um lugarzinho gostoso de se viver, distante de problemas. Só não temos retorno de benefícios”, desabafa o homem.

Basta percorrer a cidade para perceber o motivo do descontentamento dele. Em alguns locais, as ruas são esburacadas. A poucos minutos do centro de Mimoso, há um lixão a céu aberto, com uma pilha de resíduos acumulada. Apenas nos arredores do imóvel da prefeitura local é possível perceber algum progresso — vem da administração pública local a principal fonte de renda do município. Mesmo assim, próximo ao prédio, há dezenas de veículos abandonados, como kombis e vans, que, com algum conserto, poderiam servir de transporte para a população.

Dentro das casas, também existem problemas. O auxiliar de serviços gerais Saturnino Correia, 47, já perdeu as contas de quantas vezes precisou trocar o chuveiro em razão da quantidade de sal presente na água que abastece as residências dos 2.597 habitantes da cidade, segundo levantamento da CNM. “Quando queremos beber água, temos de comprar, porque é impossível consumir a que vem da Saneago (Companhia de Saneamento de Goiás). Aí eu me pergunto: como é possível viver em um lugar assim? Particularmente, eu não me importo se mudar (Mimoso deixar de ser município), tanto faz seis como meia dúzia”, garante.

"Arroz com feijão"

A própria prefeitura de Mimoso reconhece que a cidade sobrevive muito por conta do Fundo de Participação de Municípios (FPM) que recebe mensalmente da União. Até setembro deste ano, de acordo com dados do Portal do Cidadão do Tribunal de Contas dos Municípios de Goiás (TCM-GO), foram repassados pouco mais de R$ 6,01 milhões ao município. Com outros convênios, a participação do dinheiro dos cofres públicos federais na região chega a 66,3%.

“As cidades pegam o ‘arroz com feijão’, que é o FPM, para sobreviver com o mínimo possível e, assim, pagar a estrutura administrativa do município e manter despesas com saúde e educação. Mas, às vezes, não dá para pagar tudo. Para investir em outras áreas, dependemos de emendas parlamentares de deputados goianos”, diz o assessor jurídico da prefeitura local, Carlos Ladislau.

Dados do TCM-GO mostram que, atualmente, apenas 5,9% do orçamento de Mimoso é composto por receita própria. Além disso, as despesas do município com pessoal estão acima do que estabelece a Lei de Responsabilidade Fiscal. O limite de gastos com os poderes Executivo e Legislativo deveria ser de no máximo 60%, entretanto, Mimoso destina 61,11% das suas finanças para a máquina pública.

O principal argumento do governo federal no redesenho dos municípios é enxugar os gastos com Câmaras dos Vereadores e prefeituras. “Nós tivemos uma proliferação de municípios além do devido. Muitos foram criados gerando novas despesas e o não atendimento do cidadão na ponta. É o que queremos corrigir. Nós queremos que o Estado presente, em seu nível federal, estadual e municipal, seja efetivo para o cidadão”, disse o Secretário Especial da Fazenda, Waldery Rodrigues Junior, ao comentar a proposta do pacto federativo apresentada pelo governo ao Congresso no último dia 5.

Para quem vive em Mimoso há muito tempo, como o lavrador José Francisco Filho, 67, a fusão com a cidade vizinha traria alguma esperança. “Nós fomos engolidos por políticos. Muda prefeito, muda vereador, e pouca coisa acontece. Na época eleitoral, todos te enxergam. Depois, nem querem saber de você”, comenta o homem, que mora na cidade há três décadas. “Por isso, espero que essa proposta vingue, será 10 mil vezes melhor. É a única chance de irmos para frente”, diz José Francisco.