Correio Braziliense, n. 20631, 17/11/2019. Economia, p. 9

Além das distrações

Antonio Machado


Em meio à enxurrada de distrações e decisões sem importância que têm marcado a cena política num ano em que se esperava mais da economia, despontam três eventos, e apenas um com sinal positivo: a recuperação cíclica do crescimento se mostra indiferente à bagunça institucional.

Depois de dois anos de recessão severa em 2015 e 2016, quando o PIB, produto interno bruto, em dólar, desabou 27%, e mais três andando de lado, com crescimento pífio de 1% ao ano, inclusive o atual, todos os sinais apontam para a volta da normalidade. Mas nada entusiasmante.

O legado do último governo petista foi arrasa quarteirão. Também em dólar, o PIB ainda está 26% abaixo do pico de 2013 e levará tempo até recuperar o prejuízo provocado por Dilma Rousseff. A expansão de 2% ou algo mais prevista para 2020 vai comparar-se com um PIB deprimido, com muito desemprego e ociosidade na indústria, além de defasada pela carência de investimento nos últimos anos. E, quando ele voltar, será em processos e tecnologias que demandam menos empregos.

Um quadro assim seria razão suficiente para um governo mais prudente e conciliador em sua relação com os demais poderes e com a sociedade. Não é o que se tem visto, já que as polêmicas brotam como capim. Vêm delas os outros dois eventos determinantes do primeiro ano da gestão do presidente Jair Bolsonaro — a difusão de que as finanças públicas, avaliadas pela dívida pública bruta, estão no osso — o que não é bem assim — e a aversão a considerar o Estado como parte da solução.

Tais eventos puxam a economia para baixo, mas sem frustrar o impacto das reformas no governo Michel Temer, a desinibição do Banco Central em seguir emagrecendo a taxa de juro Selic devido à inflação comportada, a aprovação da nova Previdência e a confiança do mercado financeiro de que os partidos de centro no Congresso parecem dispostos a avançar a agenda reformista.

O protagonismo do centro político emerge em contraponto a um governo cujo presidente vive em conflito permanente com quem divirja de seus devaneios ideológicos, mesmo apoiadores de raiz, ofuscando o ministro da Economia, Paulo Guedes, estrela da ala dita liberal do ministério.

Social rima com liberal

Ao prometer mais do que entregou nestes 11 meses, apreciar o estilo doutrinário nas conversas com políticos, mostrar-se insensível com as políticas sociais e alardear que o país está quebrado, Guedes passou a ser olhado com reservas pelo empresariado, embora continue bastante prestigiado no mercado financeiro e entre bolsonaristas hardcore.

Dá-se pouca atenção ao fato de que o liberalismo econômico alheio às necessidades materiais da classe média empobrecida e existenciais de ampla parcela da sociedade temerosa das inovações disruptivas que mal compreendem, como o fenômeno das redes sociais e da globalização, é o elemento desestabilizador das democracias em toda parte — da França e da Inglaterra desenvolvidas a Indonésia, Bolívia e Chile, vitrine na América Latina das virtudes da primazia do mercado.

Pegue-se sua proposta correta de desindexar as rubricas do orçamento federal, deixando, em caso de risco ao cumprimento do teto de gasto, o salário mínimo sem correção por até dois anos. Ok, se tal medida se estender ao resíduo de correção monetária mantido desde o Plano Real, começando pelos papéis do Tesouro indexados à Selic. A confiança na inflação estável, afinal, tem de valer para todos.

País não está quebrado

A questão das reformas do Estado também é decisiva, mas menos pela alegada direção de insolvência e, sim, porque os governos se tornaram disfuncionais ao se curvarem à elite do funcionalismo e descumprirem itens fundamentais à boa governança, como avaliação periódica de desempenho dos funcionários e das políticas públicas. Pode-se dizer, de modo bem simples, que seu papel como “síndico” do país é insubstituível.

É fato que a dívida pública bruta subiu 26 pontos percentuais do PIB desde 2013, devendo fechar 2019 em 77,1% do PIB. Mas do total, 21% equivalem à reserva de divisas no BC, US$ 388 bilhões, e as tais operações compromissadas (venda de papéis de dívida pelo BC à banca com garantia de recompra por 1 a 90 dias) perfazem mais 17% do PIB.

Desde 2014, o deficit primário do orçamento federal, que exclui os juros da dívida pública, é pouco acima de 1% do PIB ao ano. Um quadro assim está muito longe de configurar um país quebrado.

Ex-FMI conta um segredo

O que acontece? O ex-economista-chefe do FMI Olivier Blanchard, que ocupa a primeira fila entre os mais influentes no mundo das finanças, revelou no Twitter dias atrás: “Grande parte do debate sobre política fiscal parece basear-se na noção de que os governos SEMPRE (com letra maiúscula) se comportarão mal; portanto, NUNCA (idem) se deve dizer a eles que há mais espaço político, mesmo quando existe”.

Isso, disse Blanchard, “é contraproducente e leva os governos a ignorarem os conselhos acadêmicos”. Trata-se de tática de convencimento de governantes e de políticos. Só que aqui, muita gente leva a sério.

A seriedade necessária é a confiança de que a gestão pública não vai continuar dominada por feudos de algumas carreiras, que poderes como o Judiciário vão enquadrar-se às regras gerais, a hierarquia voltará a ser respeitada, tal como o cumprimento de metas, cuja fiscalização cabe ao Congresso exercer. Faça-se isso e haverá um renascimento.

O funil do desenvolvimento

Estudo recente do insuspeito FMI indica que, de 1960 a 2014, apenas 16 países pobres ou de renda média atingiram a distinção de “Milagres Asiáticos”, alguns deles, graças à descoberta de petróleo ou à adesão à União Europeia. Em comum, dizem Reda Cherif e Fuad Hasanov, autores do estudo, a “ambição, responsabilidade e capacidade de adaptação”.

Esforçaram-se em criar “indústrias sofisticadas muito além de suas habilidades e passado tecnológico. Focaram a construção de economias baseadas em exportação. E criaram negócios ferozmente competitivos”. Bolsonaro diria “terrivelmente competitivas”. Algo mais? Muito mais.

O Estado interveio para remover obstáculos do mercado. As empresas inovaram. Trata-se, diz o FMI, da “verdadeira” política industrial ou “Política de Tecnologia e Inovação”. (...)

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