Correio Braziliense, n.20578, 25/09/2019. Política. p.4

Para analistas, fala deixa o país isolado

Rosana Hessel 

Ingrid Soares

Cláudia Dianni 


O discurso do presidente Jair Bolsonaro na abertura da Assembleia-Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), em Nova York, foi bairrista e não contribuiu para melhorar a imagem do Brasil no exterior, de acordo com especialistas ouvidos pelo Correio. Para eles, a fala do chefe do Executivo foi muito ideológica e antiquada, remetendo a um mundo que não existe mais, o do pós-guerra.

Especialistas lamentaram o fato de Bolsonaro ter desperdiçado os holofotes do mundo para falar apenas para os eleitores cativos, atacando as ONGs, os socialistas, a França, a Alemanha e a mídia, sem apresentar propostas concretas. Bolsonaro não poupou nem mesmo o Cacique Raoni, reconhecido globalmente como defensor da Amazônia e indicado ao Prêmio Nobel da Paz. Ele, inclusive, se mostrou menos flexível do que os ex-presidentes de governos militares.

“Não foi um discurso de estadista voltado para o mundo, mas de um político voltado para a base que o elegeu”, resumiu o embaixador Marcos Azambuja, conselheiro emérito do Centro Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri).

“Bolsonaro tem uma retórica que diverge da tradição da diplomacia brasileira, que sempre buscou convergências. Ele, ao contrário, acentua as divergências e se considera o detentor de uma verdade, e, por isso, vive repetindo o refrão da Bíblia como se fosse o portador dessa verdade. Mas essa não é a linguagem da diplomacia, que é a ponte para entender os outros por meio do diálogo com quem é tem outras opiniões”, avaliou o diplomata. “O presidente se dirige sempre ao mesmo grupo e costuma criticar os outros alegando que são ideólogos, quando ele também é um ideólogo da direita”, pontuou.

Na avaliação do professor de Relações Internacionais da Fundação Getulio Vargas (FGV) Vinícius Vieira, em vez de fazer um discurso antiquado, de política anticolonial e de defesa da soberania, o presidente deveria ter falado em cooperação, já que estava em um fórum multilateral. Vieira lembrou que, mesmo no período militar, falava-se mais em cooperação do que no governo Bolsonaro, uma vez que, em 1978, foi assinado o Tratado de Cooperação da Amazônia, com oito países. “Nossos problemas não serão resolvidos apenas por nós. É preciso cooperação”, disse.

“Acho que, domesticamente, o discurso cumpriu uma função. Tem lógica política para ser fiel às bases. Mas, internacionalmente, prejudica a imagem do país”, avaliou cientista político Christopher Garman, diretor da consultoria norte-americana Eurasia.

Falácias

Marcio Astrini, coordenador de Políticas Públicas do Greenpeace, considerou que o discurso foi baseado em falácias. “Bolsonaro tentou convencer o mundo de que protege a Amazônia, quando, na verdade, promove o desmonte da área socioambiental, negocia terras indígenas com mineradoras estrangeiras e enfraquece o combate ao crime florestal. Sob sua gestão, as queimadas, o desmatamento e a violência aumentaram de forma escandalosa. Para a floresta e seus povos, Bolsonaro é um problema, não a solução”, disse.

Na avaliação do professor de Ciências Políticas da Universidade de Brasília (UnB) Aninho Irachande, faltou humildade no discurso do presidente brasileiro, o que deixa o país isolado internacionalmente. “Ele não compreende a grandeza de um discurso na ONU, nem a gravidade da situação ambiental. Fez um pronunciamento para combater falácias usando outras falácias. Sair culpando a mídia e o socialismo pelo que está acontecendo no Brasil não faz sentido”, criticou.


Indígenas contestam liderança



Representantes de nações originárias criticaram ontem, em coletiva de imprensa, em Nova York, a fala do presidente Jair Bolsonaro, com relação aos indígenas, no discurso de abertura da 74ª Assembleia-Geral da ONU. Lideranças também criticaram, em nota, a youtuber Ysani Kalapalo, citada pelo presidente Bolsonaro no discurso. Natural da aldeia Tehuhungu, no Parque Indígena do Xingu (MT), Ysani acompanhou a comitiva do presidente.

“Bolsonaro se referiu a nós como animais na caverna e desrespeitou nosso líder Raoni. Se colocou, mundialmente, como uma ameaça concreta à Amazônia e ainda se coloca como porta-voz do agronegócio e da mineração, com uma visão de exploração do século 19”, disse Sonia Guajajara, coordenadora da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib). Ela e outras lideranças participaram da Cúpula do Clima, na segunda-feira.

“Bolsonaro mente e seu governo destrói o meio ambiente, explora a biodiversidade e explora nossas tradições. Permite que mineradoras e hidrelétricas avancem sobre nossos territórios e ignora totalmente a realidade indígena no Brasil. Somos 305 povos indígenas”, disse. Ela também reagiu à fala de Bolsonaro, que se referiu ao líder Raoni como “peça de manobra”, no discurso.

“Quando ele traz uma indígena e coloca um colar para apresentar uma imagem ao mundo de que está apoiando os povos indígenas, revela o tamanho do seu cinismo com a realidade que estamos vivendo hoje”, afirmou Sonia, sobre a youtuber indígena que apoia Bolsonaro. “Ela pode ter sido apresentada por ele para ser representante do seu governo, mas não dos povos indígenas, porque nós temos nossa forma e legitimidade para escolher nossos representantes.”

“Não aceitamos e nunca aceitaremos que o governo brasileiro indique, por conta própria, nossa representação indígena sem nos consultar através de nossas organizações e lideranças reconhecidas e respaldadas por nós”, afirma o grupo em nota assinada por representantes de 16 povos indígenas.

“O governo brasileiro ofende as lideranças indígenas do Xingu e do Brasil ao dar destaque a uma indígena que vem atuando constantemente em redes sociais com objetivo único de ofender e desmoralizar as lideranças e o movimento indígena do Brasil”, acrescenta a nota. (CD)

 

Trump elogia Bolsonaro. Macron ignora

 

Em seu discurso na Assembleia-Geral da ONU, o presidente da França, Emmanuel Macron, ignorou o Brasil e o presidente Jair Bolsonaro, a quem não citou em sua fala. Antes, disse à imprensa que não assistiu ao discurso do brasileiro, que fez críticas indiretas ao francês. Já o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, elogiou a fala de Bolsonaro antes de subir ao púlpito. “Bom discurso”, disse o americano em um cumprimento rápido a Bolsonaro, e não falou sobre meio ambiente, tema dos demais líderes mundiais que discursaram no encontro.

Tal qual Bolsonaro, Trump fez um discurso mais voltado a audiências domésticas e voltou a falar da guerra comercial com a China, mandando um recado. Ele disse que não vai aceitar um acordo comercial ruim com a potência asiática. A Guerra econômica entre os dois países já dura 15 meses.

Já Macron defendeu boicote a países que desmatam. “Não podemos forçar alguns países a fazerem esforços (ambientais) e continuar negociando com aqueles que não o fazem. Não podemos continuar fazendo declarações neste palco e seguir importando produtos que vão contra isso”, disse, afirmando que a “própria França importa produtos que levam ao desmatamento”. Ele afirmou, ainda, que não se pode resolver os problemas dos países por meio do isolacionismo.

Antes de seu discurso, Macron disse ao jornal O Estado de S. Paulo que não se trata de interesse econômico na floresta, ao se referir a suas falas sobre a Amazônia, mas, sim, segundo ele, de pensar no futuro da região que é “um bem comum” que todos querem ajudar.

O presidente do Chile, Sebastian Piñera, afirmou que todas as gerações enfrentam desafios, mas nenhuma geração está enfrentando um desafio tão importante como a atual, ao se referir ao aquecimento global e às mudanças climáticas. “Essa é a mãe de todas as batalhas, porque é uma batalha pela sobrevivência. O ser humano é a criatura mais inteligente que habita a Terra e, ao mesmo tempo, a única que é capaz de destruir seu próprio planeta.”

Ao abrir os debates de alto nível na Assembleia-Geral, o secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, disse que a emergência climática é agora uma crise climática, uma corrida que o mundo está perdendo. Para ele, os direitos humanos incluem direitos econômicos, sociais, culturais, políticos e civis. “A diversidade é uma riqueza, nunca uma ameaça”, afirmou.

Na segunda-feira, a primeira-ministra da Alemanha, Angela Merkel, pediu mais cooperação internacional para combater o aquecimento global, na Conferência do Clima. (CD)

 

Nas entrelinhas: o Brasil encolheu
Luiz Carlos Azedo


São raros os momentos na história do Brasil em que o país andou para trás. Sem dúvida, um deles foi no segundo mandato da ex-presidente Dilma Rousseff, quando mergulhamos numa recessão sem precedentes, cujo ônus até hoje não foi revertido. Mais raros ainda são os momentos em que o país diminuiu de tamanho em relação às demais nações do mundo. Ontem foi um dia assim, em razão do agressivo e radical discurso do presidente Jair Bolsonaro na abertura da Assembleia-Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), na qual reiterou posições ultraconservadoras, antiambientalistas e antiglobalistas.

Por suas dimensões continentais e mérito de nossa democracia, todo presidente brasileiro goza do privilégio de abrir a Assembleia-Geral da ONU. É um legado de gerações de diplomatas, que todo presidente da República, inclusive os militares, procuraram honrar. Essa tradição começou na segunda Assembleia-Geral da história, quando discursou o então ministro das Relações Exteriores, Oswaldo Aranha.

Seja para evitar as tensões entre Estados Unidos e União Soviética, que começavam a se estranhar na famosa Guerra Fria, seja pelo fato de o país ter ficado de fora do Conselho de Segurança, não se sabe ao certo, esse privilégio se manteve ao longo dos anos, sem que houvesse qualquer texto ou norma da ONU que determine a sua obrigatoriedade. Por isso mesmo, a tradição é o Brasil buscar um ponto de equilíbrio, um posicionamento que corresponda ao consenso majoritário, fugindo dos confrontos entre as nações.

O que se viu ontem, porém, foi o presidente brasileiro fazer um discurso duro, quase belicoso, que elegeu como adversários os índios, os ambientalistas, alguns líderes europeus e seus adversários de sempre: os líderes da Venezuela, de Cuba e dos partidos que integram o Foro de São Paulo. Foi um discurso para o público bolsonarista, o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, e outros líderes conservadores com os quais se alinha. Nossos mais experientes diplomatas, de forma pública ou velada, não escondem o desconforto com o teor do discurso de Bolsonaro. Foi um tiro no próprio pé.

Entre diplomatas experientes e especialistas em relações internacionais, é quase unânime a avaliação de que a política externa de Bolsonaro levou o Brasil ao isolamento. Seu discurso na ONU aprofundará essa situação, em especial por causa da questão ambiental e do confronto aberto com o presidente francês, Emmanuel Macron, que lidera a Cúpula da Clima. Seu alinhamento incondicional com Donald Trump na política internacional parece coisa daquele menino encrenqueiro que arruma confusão porque conta com a proteção de um primo grandalhão. Não é assim que as coisas funcionam na política externa.

Aliados na berlinda

Bolsonaro deveria prestar mais atenção ao que acontece com seus aliados mais importantes, antes de confrontar os principais chefes de Estado do Ocidente. Matteo Salviani, o primeiro-ministro da Itália, tentou antecipar as eleições e acabou perdendo o cargo. Em Israel, Benjamin Netanyahu, do Likud, corre o risco de perder o cargo de primeiro-ministro para Benny Gantz, do Azul e Branco, que topa fazer um governo de coalizão, mas, com apoio dos partidos árabes, quer ser o primeiro-ministro. Na Inglaterra, o novo primeiro-ministro, Boris Jonhson, tentou suspender o Parlamento na marra, para impor o Brexit sem acordo com a União Europeia, porém acabou levando uma invertida da Suprema Corte britânica, que considerou sua decisão inconstitucional, o que agora pode lhe custar o cargo.

Para completar o inferno astral dos aliados, o presidente norte-americano Donald Trump, que discursou na ONU logo após Bolsonaro, recebeu a notícia de que a Câmara dos Representantes dos Estados Unidos abriu um processo de impeachment contra ele. Segundo a deputada democrata Nancy Pelosi, por telefone, Trump teria pressionado o presidente da Ucrânia, Volodimir Zelenski, para que este investigasse o filho de um de seus principais adversários, Joe Biden. “Isto é uma quebra da Constituição americana”, afirmou a presidente da Câmara.

O tipo de diplomacia praticada por Bolsonaro tem desses problemas. Relações entre países devem ser duradouras e estruturantes, não podem se basear apenas no relacionamento pessoal e afinidade ideológica dos governantes. Bolsonaro critica os ex-presidentes Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff por privilegiar aliados políticos por razões ideológicas, sem levar em conta os reais interesses do Brasil. Está fazendo a mesma coisa com sinal trocado, com a diferença de que, em vez de ampliar as relações diplomáticas, está se isolando.

O alinhamento automático com Trump, por exemplo, é uma armadilha em termos de comércio mundial, pois a guerra cambial entre os Estados Unidos e a China não é um bom negocio para o Brasil, que hoje tem nos chineses nossos principais parceiros comerciais. Esse é um dos fatores de redução dos investimentos no Brasil, por causa da retração do crescimento mundial provocado por essa guerra comercial.