O Globo, n. 31550, 24/12/2019. País, p. 4

O perdão de Bolsonaro
Eduardo Bresciani
Gustavo Maia
Jussara Soares


O presidente Jair Bolsonaro assinou ontem decreto que concedeu indulto de Natal a agentes de segurança pública que tenham sido condenados por “excesso culposo” ou outros crimes culposos (sem intenção), desde que tenham cumprido um sexto da pena. A regra só vale para quem cometeu o ato “no exercício da função ou em decorrência dela” e o decreto tem uma lista de crimes que não podem ser perdoados. Também serão beneficiados militares das Forças Armadas empregados em operações de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) que tenham sido condenados pelo crime de “excesso culposo”.

Policiais federais, rodoviários, civis e militares; bombeiros, guardas municipais, agentes penitenciários, agentes de trânsito e guardas portuários estão entre as categorias atendidas. O texto deve ser publicado hoje no Diário Oficial. A oposição já avisou que deve ir à Justiça contra a medida.

Antes de tomar posse, Bolsonaro declarou que não haveria mais o indulto de Natal. Ele mudou de ideia, porém, quando decidiu usar a medida para beneficiar policiais e militares, que formam sua base política desde os tempos de deputado federal. É a primeira vez desde a redemocratização que um decreto de indulto nomina categorias beneficiadas, uma vez que o conceito da medida é humanitário e busca a impessoalidade.

O GLOBO teve acesso a uma versão do texto debatida ontem com Bolsonaro que divide o indulto entre “humanitário”, “para os agentes de segurança pública” e “para militares”. Nos dois primeiros casos, está proibida a concessão do benefício para aqueles que tiverem cometido 38 tipos de delitos, entre os quais crimes hediondos, homicídio praticado por grupo de extermínio, tortura, homicídio qualificado, latrocínio e estupro. As vedações também incluem corrupção ativa e passiva, tráfico, organização criminosa, posse ou porte ilegal de arma de fogo de uso restrito, lavagem de dinheiro, terrorismo, crimes sexuais, entre outros.

No caso dos militares das Forças Armadas, além das 38 vedações, acrescentam-se mais tipificações específicas da carreira, como crimes contra a segurança externa do país, contra a autoridade ou disciplina militar, entre outras.

Após a publicação do indulto pelo presidente, a concessão do benefício não é automática. A defesa do condenado precisa entrar com um pedido endereçado ao juiz responsável pela execução da sua pena, pedindo que ele ganhe o indulto. O magistrado avalia se o caso se enquadra nas regras do decreto presidencial para decidir se concede ou não o perdão.

A medida, no entanto, não beneficiará agentes de segurança envolvidos em casos rumorosos, como a morte da menina Ágatha Félix, de 8 anos, no Complexo do Alemão ,e do músico Evaldo Rosa, cujo carro foi atingido por mais de 80 tiros. Em ambos os casos, os acusados de envolvimento nos crimes respondem por homicídio doloso, e não culposo. Nos dois episódios, o entendimento dos ministérios públicos do Rio e Federal foi que os agentes não agiram em legítima defesa, como alegaram. O PM acusado de matar Ágatha e os militares que respondem pela morte de Evaldo estão em liberdade.

O indulto também não vai beneficiar agentes já condenados por crimes dolosos, caso do ex-policial militar Márcio José Watterlor Alves, que recebeu pena de 21 anos de prisão pelo homicídio da menina Haíssa Vargas Motta, de 22 anos. Na ocasião, a jovem estava em um carro com amigos, em Nilópolis, na Baixada Fluminense, quando o PM atirou 12 vezes contra o automóvel. O grupo voltava de uma festa, e o carro foi confundido com o de criminosos. Nas principais ações sobre agentes de segurança que alegam ter se confundido ao atirar e matar um inocente, o crime pelo qual respondem é doloso.

Na Justiça

A oposição pretende contestar o indulto de Bolsonaro na Justiça.

— Vamos ver quais as possibilidades jurídicas. Ele (Bolsonaro) não escuta jurista, especialista, está fazendo pela lógica do excludente de ilicitude, que já foi rejeitado pelo Congresso — disse o deputado Ivan Valente (PSOL-SP). — Ele está violando uma regra para mandar um recado de que é sempre uma injustiça prender alguém que reprimiu.

No texto, há ainda quatro proibições a todos os atingidos pelo decreto: não podem ter sofrido sanção aplicada por infração disciplinar de natureza grave nos 12 meses anteriores ao indulto; ter sido incluído no regime disciplinar diferenciado; ter passado pelo Sistema Penitenciário Federal, a não ser por interesse do próprio preso; ou ter descumprido condições da prisão domiciliar.

Segundo material divulgado pelo Planalto, o texto também cria a hipótese de conceder o perdão da pena para policiais em folga, desde que tenham atuado para eliminar o risco contra si ou outra pessoal. O governo justifica este trecho “pelo risco inerente à profissão, que os expõem constantemente ao perigo, e pelo fato de possuírem o dever de agir para evitar crimes mesmo quando estão fora do serviço”. O texto foi construído em conjunto pelo Ministério da Justiça e o Planalto.

As mudanças do indulto

Sarney

O primeiro indulto presidencial de José Sarney foi concedido em maio de 1988, antes da conclusão dos trabalhos da Assembleia Constituinte. A medida beneficiava presos condenados a até quatro anos de reclusão que tivessem cumprido um terço da pena.

O indulto do governo Sarney excluiu condenados por crimes como estupro e atentado violento ao pudor, roubo, formação de quadrilha, sequestro e sonegação fiscal, entre outros.

Collor

O governo de Fernando Collor de Mello passou a conceder indultos presidenciais tendo o dia 25 de dezembro como referência, o que reforçou sua classificação como “indultos de Natal”.

Assim como o indulto do governo Sarney, o primeiro decreto de Collor beneficiou condenados a penas de até quatro anos que cumpriram um terço da pena. Foram excluídos presos por crimes hediondos, além dos condenados por crimes como extorsão.

Fernando Henrique

No primeiro mandato do governo FH, o indulto presidencial passou a beneficiar presos condenados a penas de até seis anos de reclusão que já haviam cumprido um terço da pena.

No segundo mandato do tucano, o teto da pena para o benefício retornou inicialmente ao patamar de quatro anos. Em 2001, no entanto, foi retomada a baliza de seis anos, desde que o preso já tivesse cumprido um terço da pena.

Lula

Em seu primeiro mandato, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva manteve o parâmetro de conceder o indulto presidencial a presos condenados a penas de até seis anos de reclusão.

No segundo mandato, o perdão passou a ser concedido a presos com penas de até oito anos. O decreto de 2007 excluiu condenados por crimes de tortura, terrorismo, tráfico de drogas ou crimes hediondos, além dos previstos no Código Penal Militar.

Dilma

O primeiro indulto concedido pela presidente Dilma Rousseff manteve o parâmetro até oito anos de prisão, mas abriu também o perdão a condenados a até doze anos de detenção, desde que seguissem critérios como prestação de trabalho externo ou estivessem cursando o ensino fundamental, médio ou superior.

Dilma também trouxe a previsão do indulto para homens e mulheres que tivessem filhos menores ou portadores de deficiência.

Temer

No primeiro ano do governo de Michel Temer, o indulto alcançou presos condenados a penas de até doze anos que tivessem cumprido ao menos um quarto do tempo de detenção.

No segundo ano, Temer concedeu o indulto a presos que tivessem cumprido um quinto da pena, sem estabelecer um limite para o total da condenação. A extensão deste decreto foi contestada pela Procuradoria-Geral da República no Supremo Tribunal Federal.

Eleitorado cativo tem tinta na caneta

Com o decreto que cria uma categoria de indulto exclusiva para agentes de segurança e militares, o presidente Jair Bolsonaro conclui seu primeiro ano no Palácio do Planalto com mais uma medida voltada para a base eleitoral que o acompanha desde os tempos de deputado federal.

A utilização de sua caneta para privilegiar o eleitorado cativo é uma prática que ocorre desde o início do ano. Ainda em janeiro ele tentou promover um “libera geral” no comércio de armas , outra bandeira da sua época de parlamento.

Durante 28 anos como deputado, Bolsonaro conseguiu a aprovação de apenas dois projetos, nenhum da área de segurança. No Planalto, viu a possibilidade de tentar beneficiar seu público fiel sozinho, mas, no caso das armas, foi barrado pelo Congresso e pelo Supremo, forçado a sucessivos recuos.

No caso do indulto, mais uma vez a tinta da sua caneta pode ser contestada.