Correio Braziliense, n. 20633, 19/11/2019. Mundo, p. 12

Saída por decreto

Rodrigo Craveiro


Bloqueios no escoamento de combustível, de mercadorias e de produtos agrícolas até La Paz, Cochabamba e Santa Cruz de La Sierra. Rebelião política, com parlamentares do Movimento ao Socialismo (MAS) — o partido do ex-presidente Evo Morales — se recusando a participar das sessões na Assembleia Legislativa Plurinacional da Bolívia e emitindo repetidos ultimatos ao governo interino. Protestos reprimidos com violência pelas forças de segurança, com o registro de 23 mortes em quase um mês. Ante a pressão cada vez mais intensa dos partidos de esquerda e dos movimentos sociais sobre o governo interino de direita, cresceu a expectativa de que a presidente autodeclarada Jeanine Áñez convoque eleições por decreto. A decisão seria respaldada pela jurisprudência no mandato do também presidente interino Eduardo Rodríguez Veltzé (2005-2006). “Se percebermos que há dificuldades para poder convocar as eleições, uma das sugestões é que convoquemos eleições imediatamente, por meio de algum outro instrumento legal”, declarou o ministro da Presidência, Jerjes Justiniano, em entrevista à Rádio Panamericana. Uma ala mais radical do MAS chegou a exigir que Áñez renunciasse até a noite de ontem, sob ameaça de impor um cerco a La Paz.

Em entrevista coletiva, o ministro de Governo, Arturo Murillo, anunciou que as autoridades descobriram um suposto complô contra Áñez, que, por motivos de segurança, suspendeu uma atividade oficial na região amazônica de Beni. “Identificamos um grupo criminoso que deseja atentar contra a presidente; por isso, hoje (ontem) tivemos que cancelar sua viagem à terra natal” (na cidade de Trinidad, capital de Pando), disse, ao revelar que “há gente, claro, venezuelana, cubana e colombiana metida nisso”.

Cientista político e professor radical em La Paz, Jorge Dulon afirmou ao Correio que a convocação de eleições por meio de decreto pode surtir o efeito contrário ao da pacificação. “Áñez ainda não marcou eleições gerais porque, por uma parte, espera dar toda a legitimidade possível a esse chamado. Ela espera que o MAS participe de uma sessão legislativa conjunta, o que ainda não ocorreu”, comentou. Segundo ele, o risco de um pleito chamado por meio de decreto é o de que todas as mobilizações, movimentos sociais e conflitos latentes em distintos pontos da Bolívia se aprofundem. “Por isso, a presidente Áñez não quis fazê-lo imediatamente e preferiu gastar todas as possibilidades, a fim de que a convocação ocorra por meio da Assembleia Legislativa Plurinacional”, acrescentou. Dulon explicou que o MAS adota a estratégia de boicotar o debate sobre as eleições, rechaçar a renúncia de Morales e conseguir que ele retorne ao país para governar. “É muito provável que, amanhã (hoje), se anuncie o decreto para a convocação direta de eleições, levando-se em conta a jurisprudência adotada por Veltzé, em 2005.”

Negociação

De acordo com Dulon, a receita para a pacificação da Bolívia vai de encontro a dois elementos fundamentais. “O primeiro deles é a redução da intensidade do conflito, identificando setores que provocam essa tensão e investigando se estão relacionados com grupos terroristas, como venezuelanos ou a Inteligência cubana. O segundo envolve pensar em desenvolver diálogos entre pessoas dispostas a tanto dentro do MAS”, observa. “Seria fundamental poder firmar acordos sobre quatro demandas concretas do MAS: o salvo-conduto aos militantes e líderes estratégicos para que deixem o território boliviano; a preservação da personalidade jurídica do partido e de sua participação nas próximas eleições; a permissão a Morales para que retorne ao país e seja candidato à Presidência.” Ele disse ter certeza de que as quatro exigências serão postas à mesa de negociações, mas duvida que as duas últimas sejam cumpridas.

Por sua vez, Marcelo Arequipa — doutor em ciência política e professor da Universidade Católica Boliviana de La Paz — aposta que o MAS, fragmentado, tenta costurar uma negociação político-institucional capaz de viabilizar a convocação de eleições, enquanto uma parte insiste na queda do governo transitório. “No fim das contas, acho que  uma saída consertada vai se impor. A urgência em encarar um pleito pode levar à união do MAS”, afirmou. Ele também vê uma anistia aos membros do governo de Morales, eleições com participação do MAS e salvo-condutos a autoridades asiladas em embaixadas como medidas prioritárias.

Eu acho...

“A demanda pela renúncia da presidente Jeanine Áñez parte de uma setor muito específico, o dos movimentos sociais vinculados ao tema da produção de coca na região de Chapare, de Cochabamba. Outros setores do MAS devem aprovar a renúncia de Evo Morales. Na medida do possível, os simpatizantes de Evo precisam viabilizar uma saída democrática que tenha a ver com a convocação de eleições e a escolha de novos juízes do Tribunal Supremo Eleitoral.”

Jorge Dulon, cientista político e professor boliviano radicado em La Paz

Igreja Católica apela ao diálogo

Os bispos da Bolívia, em coordenação com a União Europeia e a Organização das Nações Unidas (ONU), pediram ao governo interino de Jeanine Áñez, aos partidos políticos e aos representantes da sociedade civil que iniciem um diálogo iminente para pacificar o país. “O diálogo é a maneira apropriada de superar as diferenças entre os bolivianos”, declarou o secretário-geral da Conferência Episcopal Boliviana, Aurelio Pesoa. Ele admitiu que “realizar eleições transparentes é a melhor maneira de superar as diferenças”.