O Globo, n. 31552, 26/12/2019. País, p. 4-5

O ex-juiz sem e a garantia do presidente

Vinicius Sassine

Gustavo Maia
Maiá Menezes
Bernardo Mello Franco
Isabella Macedo


Ao sancionar o pacote anticrime, o presidente Jair Bolsonaro ignorou ontem um pedido considerado essencial pelo ministro da Justiça, Sergio Moro. Aprovado pelo Congresso há duas semanas, o texto estipula novas regras para o combate à criminalidade. Apesar de vetar 25 itens, Bolsonaro desagradou a Moro ao endossar a criação do juiz de garantias. A nova figura jurídica será responsável por observar a legalidade de investigações e a decretação de prisões preventivas. O ministro reagiu na tarde de ontem, pouco depois de a informação vir a público. Em nota, disse que sua pasta se posicionou pelo veto à criação do novo tipo de magistrado.

O pacote anticrime traz alterações na legislação penal do país, como o aumento da pena máxima de 30 para 40 anos e a possibilidade de julgamento de milicianos por um colegiado de juízes. Além disso, entre outras iniciativas, impede a decretação de medidas cautelares, como prisões, fundamentadas exclusivamente em informações prestadas por delatores.

Desde o início da tramitação da proposta na Câmara dos Deputados, Moro colheu derrotas com a retirada de pontos defendidos pelo governo, como a ampliação do excludente de ilicitude e a possibilidade de prisão após condenação em segunda instância. “De todo modo, o texto final sancionado pelo presidente contém avanços para a legislação anticrime no país”, diz trecho da nota do ministro. Antes, o ex-juiz da Lava Jato ressaltou a contrariedade com o novo tipo de magistrado. “O Ministério da Justiça e Segurança Pública se posicionou pelo veto ao juiz de garantias, principalmente porque não foi esclarecido como o instituto vai funcionar nas comarcas com apenas um juiz (40% do total) e também se valeria para processos pendentes e para os tribunais superiores, além de outros problemas”, destaca a nota.

Entre os vetos de Bolsonaro à proposta estão a exclusão da limitação da prova de captação ambiental, o aumento da pena a assassinos que usem arma de fogo de uso restrito ou proibido, a possibilidade de triplicar a pena em casos de crimes contra a honra em redes sociais e a possibilidade da realização de audiência do preso com o juiz de garantias no prazo de 24 horas por videoconferência.

No fim da tarde, Moro voltou a abordar a sanção da proposta que cria o juiz de garantias, em tom crítico, e sem citar o nome do presidente. “Sancionado hoje o projeto anticrime. Não é o projeto dos sonhos, mas contém avanços. Sempre me posicionei contra algumas inserções feitas pela Câmara no texto originário, como o juiz de garantias. Apesar disso, vamos em frente”, escreveu em sua conta no Twitter.

“Judiciário redesenhado”

Nas redes sociais, apoiadores da Lava-Jato reagiram. Muitos deles resolveram aderir à hashtag qualificando o presidente como traidor. Filho do presidente, o deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) afirmou que tratava-se de uma “narrativa”da “nova esquerda”. “Impressionantemente os tweets saem quase que ao mesmo tempo e sobre o mesmo assunto, que repetem mais e mais posts sempre com um só alvo: o presidente, mesmo que seja outro poder o responsável”, escreveu.

A sanção ao projeto foi publicada em edição extra do Diário Oficial da União na noite de anteontem, mas o Palácio do Planalto avisou à imprensa à 1h24m da madrugada de ontem. O presidente teria até o próximo dia 6 para sancionar ou vetar o projeto. A lei entra em vigor 30 dias após sua publicação oficial, ou seja, a partir de 23 de janeiro do ano que vem.

Integrantes da Justiça Federal e da Justiça comum também reagiram à criação do juiz de garantias. Eles avaliam que o Judiciário precisará ser “redesenhado” para comportar o novo magistrado. Afinadas na crítica, a Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e a Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) têm posições diferentes sobre como procederão .

O presidente da Ajufe, Fernando Mendes, afirma que “o importante agora é a sua regulamentação”, uma vez que o presidente sancionou a medida. Já a AMB, em nota da presidente Renata Gil, diz que contestará o instrumento do juiz de garantias no Supremo Tribunal Federal (STF), “na certeza de que as inconstitucionalidades existentes serão extirpadas por violar o pacto federativo e a autonomia dos tribunais”.

Para o presidente da Ajufe, “a Justiça Federal terá de redefinir a competência penal para tornar possível a implementação do juiz. Já a AMB afirma que vai ao STF inclusive com base em parecer da Consultoria Jurídica do Ministério da Justiça e Segurança Pública. “A AMB manifestou preocupação (...) sobretudo em virtude dos custos relacionados à sua implementação e operacionalização”, diz.

As principais decisões do presidente

O que foi vetado:

Limitação da prova de captação ambiental: restituída possibilidade de captação de escuta ambiental na casa de um investigado.

Homicídio com arma de fogo de uso restrito: não se tornará mais crime qualificado.

Audiência de preso por videoconferência: vetado o dispositivo que vedava a possibilidade da realização de audiência por vídeo.

Crimes contra a honra: vetada a possibilidade de triplicar pena em casos de crimes contra a honra propagados em redes sociais.

Perfil genético de criminosos: voltou a valer a proposta para todos os crimes hediondos e não somente crimes dolosos com violência grave e contra a vida.

Improbidade: Bolsonaro garantiu a participação de entes públicos lesados em acordos em processos de improbidade administrativa.

O que foi sancionado:

Juiz de garantias: figura responsável pelo controle da legalidade da investigação criminal, diferente do juiz que dá a sentença no processo.

Pena máxima: determina o aumento do tempo máximo de cumprimento de pena de 30 para 40 anos.

Colaboração premiada: depoimentos dos delatores não poderão ser usados isoladamente para embasar medidas cautelares, como prisões, e o recebimento de denúncias pela Justiça.

Transação penal: permite a substituição de pena em crimes de menor gravidade, como a prestação de serviço comunitário. O MP pode propor acordo.

Gravação de advogado com preso: será permitida apenas em presídios de segurança máxima e com autorização judicial.

Presos perigosos: permite a permanência em presídios de segurança máxima em prazo de três anos, renováveis por iguais períodos. Limite atual é de 360 dias.

Saída da prisão: proíbe a saída temporária da prisão aos condenados por crime hediondo que resultaram em morte.

Liberdade condicional: Impede que condenados por crimes hediondos com resultado em morte possam obter o benefício.

Milícia: acusados de formação de milícias poderão ser julgados por Varas Criminais colegiadas.

‘Informante do bem’: Administração Pública terá ouvidorias para receber denúncias sobre crimes de servidores.

Confisco: estabelece o “confisco alargado de bens”. Nos casos de pena máxima maior que 6 anos de prisão, a Justiça pode decretar a perda dos bens que são produtos do crime.

Para fechar o ano, mais uma derrota de Moro

A manhã de Natal do ministro Sergio Moro lhe trouxe de presente mais uma contrariedade, que se soma a outras tantas que coleciona ao longo deste primeiro ano à frente do Ministério da Justiça. Desta vez, no entanto, foi diferente. Acostumado a silenciar diante de derrotas ou insatisfações, o ex-juiz da LavaJato soltou nota criticando a decisão do presidente Jair Bolsonaro de sancionar a criação do chamado juiz de garantias, aprovado pelo Congresso como parte do chamado pacote anticrime.

A atuação de Moro para que este personagem jurídico não fosse instituído vinha desde seus tempos da magistratura. Em março de 2017, o ministro esteve no mesmo plenário que votou seu projeto para criticar a existência do juiz de garantia. O sistema já funciona em São Paulo: é ele que instrui o processo, recolhe provas, ouve testemunhas. E depois da denúncia do Ministério Público, a ação vai para a mão de outro magistrado.

Em silêncio, Moro cedeu, em fevereiro, à pressão do presidente Bolsonaro e exonerou do cargo de suplente do Conselho Nacional de Política Nacional e Tributária a cientista política Ilona Szabó. Um sinal de perda de autonomia. A fidelidade do ministro a seu chefe foi mantida mesmo quando viu seu pacote anticrime ser tratado pelo governo como agenda secundária na Câmara. Interlocutores souberam de sua insatisfação, mas Moro evitou reclamar do Planalto em público. E com um lacônico “lamento o ocorrido”, o ministro da Justiça reagiu à retirada do Coaf da Justiça, um grande trunfo para o controle das informações sobre lavagem de dinheiro.

Desta vez, Moro foi mais claro. O ministro olhou para o passado e viu sua bandeira como magistrado contrariada pelo Executivo, em um projeto do qual é o maestro. Ironicamente, sua derrota se deu, desta vez, no texto legal que foi em boa medida desenhado pelo próprio ex-magistrado. Acabou esvaziado primeiro pelo Congresso, e finalmente pelo presidente da República.

A maior derrota de Sergio Moro

Acriação do juiz de garantias é a maior derrota imposta a Sergio Moro desde que ele abandonou a toga para entrar na política. O ministro da Justiça já havia sido contrariado outras vezes pelo Congresso e pelo próprio chefe. Mas a nova figura jurídica, sancionada na véspera do Natal, é uma resposta direta à sua atuação na Lava-Jato.

“É uma grande ironia. No chamado pacote Moro, foi aprovada uma medida que acaba com o jeito Moro de julgar”, diz o deputado Paulo Teixeira (PT-SP), um dos autores da proposta sancionada pelo presidente Jair Bolsonaro. “Muitas vezes, o juiz que determina as medidas cautelares perde a imparcialidade e contamina sua atuação. Foi o que aconteceu na Lava-Jato”, afirma o petista.

As mensagens obtidas pelo Intercept Brasil indicaram que Moro colaborava ativamente com a força-tarefa de Curitiba. A publicação dos diálogos desgastou o ministro e facilitou a aprovação da mudança. “Quando os diálogos vieram à tona, o grupo de trabalho estava reunido para analisar o pacote anticrime. Isso influenciou na aprovação, embora não tenha sido a nossa motivação inicial”, diz a deputada Margarete Coelho (PP-PI), que dividiu a autoria da proposta com o colega do PT.

Ela evita fazer críticas diretas a Moro, mas contesta os argumentos do ministro contra a mudança na lei. “Dizer que o juiz de garantias vai burocratizar os processos é uma inverdade. O que atrasa a Justiça são as nulidades. Agora elas vão diminuir, porque haverá mais isonomia entre a acusação e a defesa”, sustenta.

A deputada também rebate as associações de magistrados, que alegam falta de estrutura para implementar a novidade. “Quando criaram o processo eletrônico, também disseram que seria inviável porque algumas comarcas não tinham nem internet. Hoje o sistema está funcionando”, afirma.

Ao reclamar da sanção presidencial, Moro deu mais combustível aos congressistas que festejavam sua derrota. “Perdeu e passou recibo. Deve ter sido o pior Natal da vida dele”, provoca Paulo Teixeira.

Maia elogia, e grupo de senadores protesta

Câmara e Senado tiveram reações distintas à sanção do pacote anticrime pelo presidente Jair Bolsonaro. Enquanto um grupo de senadores afirmou que Bolsonaro frustrou promessas feitas à Casa de que vetaria a criação do juiz de garantias, o texto sancionado foi recebido com elogios pelos deputados. Segundo o presidente da Câmara Rodrigo Maia (DEM-RJ), Bolsonaro “valorizou” o trabalho do Congresso.

— Parabenizo o presidente Bolsonaro que sancionou os projetos dos ministros Alexandre Moraes e Moro e principalmente valorizando o trabalho do grupo de trabalho da Câmara e os plenários da Câmara e Senado — afirmou Maia ao GLOBO.

Entre senadores, por outro lado, o clima é de insatisfação. O entendimento era que Bolsonaro seguiria a recomendação de Moro e vetaria o trecho do juiz de garantias, incluído pela Câmara. Por isso, aceitaram votar o texto sem alterações mesmo sem concordar com a íntegra e, assim, permitir sua aprovação ainda em 2019. No retorno das atividades legislativas, em fevereiro, o presidente deve sofrer pressões e até retaliações por parte de senadores mais alinhados a Moro, especialmente os do grupo “Muda Senado” — bancada informal que reúne um quarto dos parlamentares da Casa.

Compromisso desfeito

O líder do Podemos no Senado, Alvaro Dias (PR), afirmou que a suposição dos senadores era que o veto seria “óbvio” e adiantou que vai trabalhar em uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin) no STF para questionar a criação do juiz de garantias nos próximos 30 dias, antes de a lei entrar em vigor.

Ao GLOBO, a senadora Simone Tebet (MDB-MS), presidente da Comissão de Constituição e Justiça(CCJ),classificou a decisão do presidente como “inacreditável, inexplicável e decepcionante”. Ela frisou que havia um acordo com o líder do governo no Senado, Fernando Bezerra Coelho (MDB-PE), para manter no Congresso o eventual veto à criação do juiz de garantias. 

— Vai gerar caos e inviabilizar o sistema criminal brasileiro — comentou a senadora, que está no Chile.

Fernando Bezerra reconheceu que havia “o compromisso de defender a manutenção dos vetos”, mas apontou que o presidente “preferiu acatar” a proposta dos deputados e conclamou todos a trabalhar por uma “rápida e boa regulamentação”.

Nos bastidores, congressistas não descartam a possibilidade de Bolsonaro ter permitido a criação do juiz de garantias pensando na situação de seu filho, o senador Flávio Bolsonaro (sem partido-RJ), investigado pelo Ministério Público do Rio por peculato e lavagem de dinheiro. Bolsonaro já afirmou entender que há “abuso” na investigação.

Na Câmara, a oposição comemorou a manutenção do juiz de garantias. O deputado Paulo Teixeira (PT-SP) afirmou em redes sociais que o juiz das garantias é um “presente de Natal para o povo brasileiro” e aproveitou para criticar Moro. “É a superação do modelo de juiz que se contamina, como foi a atuação do Sergio Moro, para que tenhamos mais julgamentos isentos no Brasil”.

Para o deputado Lafayette de Andrada (RepublicanosMG), relator do pacote anticrime, alguns vetos podem ser derrubados na Câmara: 

— Metade (dos vetos) ainda acho que a Câmara derruba. Sobre uso de armas de fogo de uso restrito,nas razões do veto, o presidente avaliou que pode prejudicar policiais. Mas (o armamento) é de uso proibido pelos civis, não pelos policiais.