O Globo, n. 31554, 28/12/2019. Sociedade, p. 24

Presidente do Ibama libera obra, contra parecer técnico

Leandro Prazeres


Documentos obtidos pelo GLOBO mostram que o presidente do Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (Ibama), Eduardo Fortunato Bim, contrariou dois pareceres da área técnica do órgão e liberou o desmatamento de uma área da Mata Atlântica, um dos biomas mais ameaçados do país, no Paraná.

A empresa beneficiada foi a Tibagi Energia. Ela tentava desde o final de 2018 obter as licenças para a construção de um canteiro de obras para uma usina hidrelétrica às margens do rio Tibagi. Para construir o canteiro, seria necessário o desmate de uma área de aproximadamente 14 hectares (equivalente a 14 campos de futebol).

Apesar de a legislação prever que o licenciamento da obra é de competência estadual, como o desmate seria feito na Mata Atlântica, demandava anuência prévia do Ibama. Durante o processo de análise do pedido, os fiscais do órgão detectaram que, mesmo antes de conseguir autorização, a área já havia sido desmatada. Em abril deste ano, uma força-tarefa de técnicos do Ibama do Paraná recomendou que o órgão não desse anuência ao desmate. Eles alegaram que a região possuía “elevado potencial ambiental, cultural e paisagístico, e que necessita de um grau de proteção compatível à sua complexidade”.

Ainda segundo o parecer, a área é rica em fauna endêmica (que só existe naquele local) e é habitat de espécies ameaçadas de extinção. O parecer da área técnica foi acatado pela superintendência do Ibama no Paraná.

Inconformada com a negativa, a empresa recorreu da decisão. Novamente, a mesma equipe técnica se posicionou contra o desmate e o parecer foi mais uma vez acatado pela superintendência do Ibama-PR. Em 3 de junho, a empresa, então, recorreu à presidência do Ibama. Apenas oito dias depois, Bim assinou um despacho liberando o desmate. O caso ainda não tinha vindo a público. Os documentos estão em um sistema interno da autarquia.


Em seu despacho, Eduardo Bim criticou a atuação dos seus subordinados: “Competindo o licenciamento ambiental a terceiro, não cabe ao Ibama, quando da análise da anuência de supressão da Mata Atlântica, atuar como corregedor do órgão licenciador ou relicenciador”, afirmou.

“Não cabe ao Ibama fiscalizar, periciar ou avaliar licenciamentos ambientais conduzidos por outros entes federativos. Ao Ibama cabe unicamente analisar as questões relativas à Mata Atlântica, mais especificadamente a sua supressão”, diz outro trecho do documento.


Compensação ambiental

Em relação ao fato de a área já ter sido desmatada mesmo sem anuência do Ibama, Eduardo Bim determinou que empresa deve compensar uma área equivalente ao dobro da área suprimida, totalizando 28 hectares.

Para a diretora-executiva da ONG S.O.S Mata Atlântica, Márcia Hirota, o “modus operandi” adotado por Bim preocupa ambientalistas e cientistas. Esta não foi a primeira vez que ele ignorou os pareceres de técnicos do órgão para liberar empreendimentos ou atividades em áreas consideradas sensíveis.

— O que nos preocupa é o modus operandi. O Ibama tem um corpo técnico extremamente qualificado e, em vários momentos, o atual presidente do órgão ignorou as recomendações dos seus técnicos e liberou atividades.

Em abril, Bim contrariou pareceres desfavoráveis e abriu a possibilidade para a exploração de petróleo e gás numa bacia próxima ao Parque Nacional Marinho de Abrolhos, na costa da Bahia. A região é considerada extremamente sensível por ser o habitat de espécies endêmicas e de servir de refúgio para aves, tartarugas e baleias.

Em setembro, Bim contrariou, novamente, pareceres de órgãos técnicos do Ibama e levantou o embargo sobre uma área de 22 mil hectares em que houve plantação de soja dentro de terras indígenas em Mato Grosso. A preocupação em torno da repetição desse padrão é ainda maior em relação à Mata Atlântica porque este é um dos biomas mais ameaçados do país. Estima-se que apenas 12,4% de toda a área dessa floresta nativa ainda estejam intactos. Ela é o habitat de 15,7 mil espécies de plantas e animais, dos quais 8 mil são endêmicas.


‘Razões técnicas’

Indagado pela reportagem, o Ibama afirmou que o despacho assinado por Bim teve como base “razões técnicas e jurídicas”. O órgão disse que um dos argumentos centrais do parecer que recomendou a não-anuência para o desmate era a ameaça a uma espécie de planta nativa, o pequi-anão.

Ainda segundo a presidência do Ibama, a empresa responsável pela hidrelétrica conseguiu provar que a espécie não estaria em extinção. A nota repetiu o argumento presente no despacho de Bim, afirmando que o órgão não deveria atuar como “corregedor” do órgão ambiental estadual.

A reportagem enviou questionamentos à Tibagi Energia, responsável pela hidrelétrica, mas, até o fechamento desta edição, não obteve resposta.

“O Ibama tem um corpo técnico extremamente qualificado e, em vários momentos, o atual presidente do órgão ignorou as recomendações e liberou atividades” — Márcia Hirota, diretora executiva da ONG S.O.S. Mata Atlântica.