O Globo, n. 31556, 30/12/2019, País, p. 4

Ano da baixaria

Bernardo Mello


O recorde de processos no Conselho de Ética da Câmara dos Deputados — foram 20 instaurados neste ano, o maior número da década — sinaliza que o decoro parlamentar foi uma instituição enfraquecida no Brasil de 2019.

A retórica agressiva, a sucessão de ofensas e os xingamentos impublicáveis que ecoaram nas casas legislativas representam uma “política do confronto”, encampada principalmente por correligionários do presidente Jair Bolsonaro, cujo teste de fogo será as eleições municipais de 2020, na avaliação de especialistas ouvidos pelo GLOBO.

Dos 20 processos no Conselho de Ética, 12 tiveram deputados do PSL como alvo. A frequência do confronto também apareceu em casas legislativas locais, como a Assembleia Legislativa de São Paulo, que registrou 21 denúncias em seu Conselho de Ética neste ano — 18 delas também envolvendo deputados do PSL.

A maioria dos processos foi instaurada depois do racha entre Bolsonaro e o presidente da legenda, Luciano Bivar, em outubro, quando os ataques verbais no plenário da Câmara e nas redes sociais passaram a ser disparados entre as diferentes alas do partido.

A oposição ao governo Bolsonaro também desceu o nível este ano — em abril, durante a fala do ministro da Economia, Paulo Guedes, no Congresso, o deputado Zeca Dirceu (PT) o chamou de “tigrão” com os aposentados e “tchutchuca” com os privilegiados.

A antropóloga Isabela Kalil, da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (Fapesp), avalia o enfraquecimento da chamada “liturgia” do cargo — isto é, um conjunto de comportamentos com maior formalidade — como um sinal também da ampliação do perfil da Câmara, antes mais restrita a grupos homogêneos e velhas linhagens políticas. O grupo bolsonarista, lembra Isabela, se elegeu buscando a cartilha de “viralizar” nas redes sociais, normalmente associada a comportamentos polêmicos e agressivos. Para a antropóloga, este comportamento — que ela chama de “política emocionada” — se manifestou já no impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff, em discursos inflamados como o da então advogada Janaína Paschoal, hoje deputada estadual em São Paulo.

— Se um político não segue essa cartilha hoje em dia, ele acaba sendo considerado chato, não ganha atenção — pontuou Isabela. — Em 2020, teremos um novo termômetro eleitoral dessa bolsonarização, porque será o momento em que políticos locais vão tentar se valer desta lógica. Será possível avaliar a dimensão desse fenômeno.

Ataques e provocações

Em junho, em raro pronunciamento na Câmara dos Vereadores do Rio, Carlos Bolsonaro (PSC) irritou colegas ao ironizar características físicas de Reimont (PT) e Tarcísio Motta (PSOL). Chamou o primeiro de “cabeça de balão” e disse que o segundo deveria “ir pra Venezuela fazer um regime”.

Segundo o filósofo Eduardo Jardim, a carga machista e homofóbica de grande parte dos xingamentos é um eco do preconceito presente na sociedade e nos próprios usos da Língua Portuguesa:

— Não podemos ser conservadores a ponto de querer recuperar a liturgia, que é algo falido. Há, no entanto, uma chance para novos modelos aparecerem. É preciso encarar o desafio de pensar em outras maneiras de se fazer política.