Correio Braziliense, n. 20596, 13/10/2019. Mundo, p. 12

Impeachment invade campanha democrata

Silvio Queiroz


Não é apenas na Casa Branca e no entorno imediato de Donald Trump que a temida “palavra que começa com ‘i’” tira o sono de assessores e estrategistas. Desde que a Câmara dos Deputados decidiu abrir inquérito sobre acusações que podem resultar em um pedido de impeachment do presidente, um fator inédito entrou — para ficar — no cálculo das equipes de campanha dos principais candidatos da oposição democrata à sucessão, na eleição de 2020. Nunca antes na história da democracia americana, o processo eleitoral vai deslanchar com o ocupante do cargo e candidato à reeleição sendo objeto de uma investigação que, em tese, pode lhe custar o mandato.

“Isso é uma bomba atômica lançada no meio da corrida, e vai mudar a dinâmica da coisa para todos”, avalia Jared Leopold, assessor do governador do estado de Washington, Jay Inslee, que acaba de desistir da disputa interna no Partido Democrata. “Ninguém pode fazer de conta que tudo segue como antes”, insiste Leopold. Os pré-candidatos “nanicos”, como Inslee, são os primeiros a se ressentir: desde logo, as audiências do inquérito no Congresso dominam a cobertura política da mídia em um momento crítico para a “peneira” que precede as primeiras eleições internas nos estados, a partir de fevereiro.

Mas não faltam motivos de preocupação e incerteza para os favoritos a conquistar a candidatura para enfrentar Donald Trump em novembro de 2020. A começar pelo ex-vice-presidente Joe Biden, que lidera as pesquisas nacionais entre o eleitorado democrata: é ele quem está no centro do episódio que levou a presidente da Câmara, a oposicionista Nancy Pelosi, a determinar a abertura do inquérito. Três comitês apuram a denúncia de um agente de inteligência lotado na Casa Branca de que Trump pediu ao presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelenski, para investigar possíveis ações irregulares de Biden e do filho no país, quando o hoje presidenciável era o vice de Barack Obama.

“As audiências na Câmara vão estar em andamento quando começarem as primárias”, observa Matt Barreto, cofundador da empresa de pesquisas Latino Decisions. “A mídia só vai falar nisso, e ninguém vai encontrar espaço para discutir outros assuntos, como reforma da imigração, planos de saúde e revisão do código penal”, observa. Na assessoria de Biden, uma preocupação adicional é a instauração do julgamento político no Senado, em plena campanha. Até pelo teor das acusações a que o presidente responde, a expectativa é de que a defesa se concentre em explorar os negócios do filho do candidato na Ucrânia — e não se descarta a ideia de que o próprio Biden seja convocado a depor.

A presença de Trump no banco dos réus de um processo de impeachment no Senado pode soar como música para os pretendentes da oposição, mas nem por isso o cenário está isento de riscos para os principais rivais do ex-vice nas primárias democratas. Elizabeth Warren, Bernie Sanders e Kamala Harris, que lutam para se aproximar de Biden nas pesquisas, são todos senadores. Caso o julgamento político seja instalado, se verão na posição desconfortável de juízes do adversário contra quem voltam desde já suas campanhas.

Warren, que no momento parece ter consolidado o segundo lugar na disputa interna, tem a seu favor o registro de que defende o afastamento do presidente desde abril — foi a primeira entre os presidenciáveis a se colocar sobre o tema. Não por acaso, ela não perdeu tempo para elogiar a abertura do inquérito. “A hora do impeachment é agora”, discursou dias depois para simpatizantes, em New Hampshire. “Fico feliz em ver que a Câmara deu esse passo. Espero que isso seja feito, e seja feito logo.”

Jeff Link, veterano estrategista democrata, vê razões de sobra para o senso de urgência da senadora. As últimas pesquisas em Iowa e New Hampshire, os primeiros estados a realizarem as primárias, ela ultrapassou Biden pela primeira vez. “O impeachment é uma ótima notícia para ela: se as coisas ficarem congeladas por conta disso, ela estará na dianteira ou muito próxima do favorito.”

Frase

"Isso é uma bomba atômica lançada no meio da corrida, e vai mudar a dinâmica da coisa para todos. Ninguém pode fazer de conta que tudo segue como antes”

Jared Leopold, assessor de campanha democrata