Correio Braziliense, n. 20597, 14/10/2019. Mundo, p.12

Supremacia em xeque

Rodrigo Craveiro


Já se passaram 5.013 dias desde que o indígena Evo Morales, então aos 46 anos, deixou de ser um líder “cocalero” influente para se sentar à cadeira no Palacio Quemado, sede do Executivo da Bolívia. “Vamos mudar a Bolívia. O sangue derramado por nossos irmãos não será em vão. Será um governo sem mortos”, prometeu o presidente, ao tomar posse. “Faremos muitas mudanças, mas todas através da democracia. Estamos aqui para mudar, para acabar com as injustiças e com as desigualdades históricas”, acrescentou. No próximo domingo, o líder aimará tentará o quarto mandato consecutivo em eleições gerais marcadas pela incerteza. “É o meu último governo. Quero lhes dizer, muito sinceramente, satisfeito. Não é fácil ser presidente”, afirmou Morales, no último dia 10, em entrevista à rede ATB. Ele assegurou que, nos últimos 13 anos à frente do governo, conseguiu reduzir a pobreza e a desigualdade social, além de acelerar a economia. “Se entrarmos em confronto (com adversários), deixaremos de ser os primeiros em crescimento econômico na América do Sul”, advertiu.

Especialistas bolivianos admitem que a oposição boliviana representa uma ameaça às pretensões de Morales de permanecer no poder. “Evo segue como principal candidato à presidência. No entanto, nestas eleições, ele não tem a mesma força mostrada nas eleições passadas. Não existem sinais claros de que o presidente possa obter a maioria absoluta dos votos (50% mais um). Alguns institutos de pesquisa indicam que ele perderia no segundo turno”, disse ao Correio Julio Ascarrunz Medinaceli, licenciado em ciência política pela Universidad del Museo Social Argentino.

 

Acertos

Segundo Ascarrunz, a estabilidade econômica e social foram os principais acertos de Morales. “O modelo econômico implementado mostrou resultados positivos no que diz respeito ao crescimento macroeconômico e à redução da pobreza”, comentou. O estudioso entende que a estabilidade social se deve ao amplo apoio de organizações sindicalistas ao Movimento Ao Socialismo (MAS), partido governista. “Isso não quer dizer que as greves e os protestos acabaram por completo, mas que poucas paralisações desestabilizaram a Bolívia”, explicou. Apesar de reconhecer a fragilidade da oposição, representada principalmente pelo candidato e ex-presidente Carlos Mesa, Ascarrunz aposta que os partidos contrários ao MAS vivem sua melhor fase eleitoral desde aquele 22 de janeiro de 2006, quando Evo assumiu o poder. “Mesa aparece na aliança Comunidad Ciudadana, uma coalizão entre partidos menores e subnacionais, com aval de plataformas cidadãs. Pela primeira vez, se coloca em dúvida a vitória completamente assegurada de Evo. Um possível triunfo opositor nas eleições depende de conseguirem, ou não, forçar um segundo turno”, disse.

“Teremos um final do jogo eleitoral digno de enfarte”, prevê Marcelo Arequipa, doutor em ciência política e professor da Universidade Católica Boliviana de La Paz. Ele duvida de um resultado avassalador a favor de Evo Morales. “Caso o presidente vença, será por uma margem muito apertada, entre 10 e 12 pontos percentuais em relação a Carlos Mesa”, observa. No entanto, ele aponta Evo como favorito. “Por administrar as questões de governo há mais de uma década e por ter se transformado em símbolo de estabilidade macroeconômica. Carlos Mesa, por sua vez, surge com mais incertezas do que com certezas.”

 

Inclusão

Arequipa concorda que Morales tenha feito uma boa gestão pública e econômica. “Ele conseguiu que falassem na Bolívia, de maneira mais forte e notória, sobre o tema da inclusão social. Setores mais marginalizados ascenderam à classe média”, lembrou. O discurso reforçado em defesa da soberania nacional também teria sido bem aceito por eleitores. Os temais mais imediatos, entretanto, não cooperam com o chefe de Estado. Morales recebeu profundas críticas sobre o modo como gerenciou os incêndios na região amazônica, principalmente a demora em reagir no combate ao fogo. “É um tema que a população entende, não houve adequada gestão do desastre.”

O desejo de levar adiante um quarto mandato, principalmente após o referendo de 21 de fevereiro de 2016, em que os bolivianos rejeitaram mudança na Constituição para ampliar os limites da reeleição, incitou debates sobre uma suposta transgressão democrática. Yerko Ilijic Crosa, professor de direitos humanos da Universidade Católica Boliviana San Pablo, afirmou que um novo governo de Evo Morales estaria marcado por forte tendência ao conservadorismo e pelo isolamento de instituições. “Seria um governo absolutamente inseguro com a democracia, contra o Estado de direito e a autonomia das instituições, além de absolutamente centralista e incapacitado, ante a contaminação nacional populista”, advertiu. O Correio entrou em contato com Evo Morales, por meio do WhatsApp, mas não obteve resposta até o fechamento desta edição.

 

Os cenários das urnas

Para ser eleito em primeiro turno, sem depender de ninguém, Evo Morales precisará obter a maioria absoluta dos votos, ou seja, 50% mais um. No entanto, o sistema eleitoral boliviano permite que um candidato vença no primeiro turno com mais de 40% dos votos, caso tenha vantagem igual ou superior a 10 pontos percentuais em relação ao segundo colocado. Nas eleições de 20 de outubro, Evo buscará ultrapassar a barreira dos 40% assegurando que o segundo colocado tenha 30% ou menos de votos. Os institutos de pesquisa sugerem que, no caso de segundo turno, as chances de uma vitória de Evo Morales reduziriam.

 

Pontos de vista

Por Marcelo Arequipa

Oposição dispersa

“Na Bolívia, não existe uma oposição forte, mas oposições que, pouco a pouco, desenham o cenário político. Em primeiro lugar, na medida em que a mensagem mais contundente é remover Evo Morales do poder. A partir daí, as ideias da oposição sobre como adminis-trar o país são muito dispersas e distintas. A ideia central é tirar Evo do poder, aconteça o que acontecer. Os baluartes mais importantes da oposição na Bolívia se centram em lideranças personalíssimas da política. O principal candidato é Carlos Mesa. Se existir a intenção de Evo Morales de permanecer indefinidamente no poder, isso não será bem recebido por parte de um determinado setor ou de parte da população. Muitas pessoas não veem com bons olhos o fato de alguém desejar se manter no poder de modo tão recorrente.”

Doutor em ciência política e professor da Universidade Católica Boliviana de La Paz

 

Por Julio Ascarrunz Medinaceli

Fragilidade política

“A oposição boliviana, em tempos de Evo Morales, tem sido frágil. Somente durante o período 2006-2009, ela pôde controlar a maioria dos senadores para fazer contrapeso no poder do governo. Quando Morales e o seu Movimento ao Socialismo (MAS) começaram a controlar e a dominar os espaços institucionais, ela entrou em xeque e não soube como se recuperar. Isso, de alguma maneira, ajuda a explicar por que a oposição não pôde terminar de concentrar as demandas dos cidadãos que começaram à raiz do referendo de 2017.  As reclamações foram dispersas e até dissolvidas em candidaturas opositoras e no desgaste natural que o tempo impõe à mobilização e à ação coletiva.”

Licenciado em ciência política da Universidad del Museo Social Argentino

 

Por Yerko Ilijic Crosa

Alianças partidárias

“Carlos Mesa é o candidato da oposição com mais possibilidades de ganhar no segundo turno. Três institutos de pesquisa afirmam que é muito provável uma grande quantidade de votos indecisos e de insatisfeitos com o modelo se concentrarem na figura de Mesa. O governo seguirá conformado e condicionado por alianças entre blocos partidários territoriais e cívicos, qualquer que seja o próximo chefe de Estado.”

Professor de direitos humanos da Universidade Católica Boliviana San Pablo (em La Paz)