Correio Braziliense, n. 20601, 18/10/2019. Mundo, p. 8

Nas mãos do Parlamento

Rodrigo Craveiro


Depois do alívio e do entusiasmo ante a aprovação de um acordo (veja o quadro) com a União Europeia (UE) e o aval dos 27 países-membros sobre o Brexit, o primeiro-ministro britânico, Boris Johnson, deposita suas esperanças na aprovação do texto, amanhã, por parte do Parlamento. “Estou muito confiante de que, quando os deputados de todos os partidos olharem para este acordo, verão o mérito de apoiá-lo e realizar o Brexit em 31 de outubro”, disse o premiê, que classificou o documento como “excelente”. A julgar pelas declarações do líder trabalhista, Jeremy Corbyn, o chefe de governo conservador deverá enfrentar uma votação tensa e apertada. “Pelo que sabemos, parece que o primeiro-ministro negociou um acordo ainda pior que o de Theresa May (sua antecessora), que foi rejeitado em massa. Esse acordo de traição arrisca nossos direitos, proteções e o NHS (sistema público de sáude). A melhor forma de obter o Brexit é dar ao povo a palavra final em uma votação pública”, afirmou o opositor, ao sugerir novo referendo.

“É muito mais do que um simples acordo. É um texto jurídico, que dá certeza jurídica à situação criada com o Brexit. O texto protege os direitos de nossos cidadãos, protege a paz e a estabilidade na ilha da Irlanda”, celebrou Jean-Claude Juncker, presidente da Comissão Europeia, o órgão executivo da UE, durante a cúpula de líderes do bloco, que termina hoje em Bruxelas. “O acordo significa que não são necessários mais adiamentos. (…) Ele nos traz certeza onde o Brexit trazia incerteza”, acrescentou. O texto busca manter a Irlanda do Norte regida por algumas regulamentações europeias do mercado único, permanecendo em uma união aduaneira com o bloco.

Porta aberta

O presidente do Conselho Europeu, Donald Tusk, admitiu que o pacto permite evitar o caos e um ambiente de conflito entre a União Europeia e o Reino Unido, mas não escondeu a tristeza com a saída de Londres. “Eu espero que um dia decidam regressar, a porta estará sempre aberta.” O acordo de Johnson precisará vencer a resistência dos trabalhistas e a oposição declarada do norte-irlandês Partido Unionista Democrático (DUP). Apesar de aliados do premiê, os unionistas temem que a Irlanda do Norte fique isolada do restante do Reino Unido e anunciaram que “não estariam em condições de apoiar as propostas”.

Para Andrew Blick, diretor do Centro para Política e Governo Britânicos e do Departamento de História e Política do King’s College London, o resultado da votação no Parlamento permanece incerto. “O DUP se opõe e outros na ala eurocética do Partido Conservador podem segui-lo. Também será preciso ver se haverá votos suficientes de ex-parlamentares conservadores e de trabalhistas rebeldes, em apoio a Johnson”, comentou ao Correio. “Uma derrota do premiê poderia envolver um pedido para um adiamento, com o qual a UE pode concordar ou não; se a votação for vinculada a uma eleição geral ou a um segundo referendo, isso poderá influenciar a opinião da UE. No entanto, o bloco pode decidir que simplesmente deseja a saída imediata do Reino Unido.” Blick disse que o acordo, na prática, separa a Irlada do Norte do Reino Unido, o objetivo previamente anunciado pelo primeiro-ministro. “Há muitos assuntos políticos e técnicos a resolver. A implementação total da lei por Londres e pela UE até 31 de outubro será um desafio, e um adiamento técnico poderia ser necessário. Mas isso será politicamente difícil para Johnson, mesmo que garanta suporte parlamentar necessário para o acordo.”

Anthony Glees, professor emérito da Universidade de Buckingham (Reino Unido), vê o texto negociado ontem com reservas. “O acordo é basicamente o mesmo proposto por Theresa May, talvez um pouco pior para o Reino Unido. Mas está claro que o acordo aceita que o Reino Unido permaneça ‘economicamente independente’ em relação à UE e deve garantir uma concorrência aberta e justa, abrangendo compromissos sólidos para garantir condições equitativas”, afirmou ao Correio. “Ele causará danos econômicos ao Reino Unido. As famílias ficarão até 2 mil libras esterlinas mais pobres, e os empréstimos públicos aumentarão em 60 bilhões de libras esterlinas a cada ano. Mas trata-se de um acordo, e acho que os parlamentares deveriam votar por ele.”

Glees lembra que Boris Johnson precisará de 320 votos a favor do acordo. “Até o momento, achamos que ele tem 287. Se o DUP (Partido Unionista Democrático, norte-irlandês) o apoiar, ele ficará com 297 e precisará de mais 23. Mas o premiê expulsou 21 do próprio partido. Johnson  oferecerá o retorno desses parlamentares? Alguns trabalhistas também votarão com ele”, previu.

Frase

“Agora, é o momento de fazermos o Brexit e de trabalharmos juntos em nosso futuro. Creio que é tremendamente positivo para os dois, para o Reino Unido e a União Europeia”

Boris Johnson, primeiro-ministro do Reino Unido

Eu acho...

“O acordo passará no Parlamento? Talvez com um segundo referendo? Ninguém é capaz de saber. Se Boris Johnson aprová-lo, ele será primeiro-ministro pelos próximos cinco a 10 anos. Este é seu prêmio e ele se importa com isso mais do que com o Brexit. Como o Brexit significa risco econômico e porque Johnson deseja se manter no poder, talvez as coisas melhorem uma vez que o acordo seja feito. Saberemos disso no sábado.”

Anthony Glees, professor emérito da Universidade de Buckingham (Reino Unido)

O pacto em resumo

Conheça a seguir os principais pontos do acordo

“Backstop”

Prevê mais um “backstop”, o mecanismo de segurança que manteria o Reino Unido num território aduaneiro com a União Europeia (UE), rejeitado pelo primeiro-ministro britânico Boris Johnson porque impediria Londres de concluir acordos de livre-comércio com países terceiros.

Regime alfandegário da Irlanda do Norte

A Irlanda do Norte, uma província britânica, permanece no território aduaneiro do Reino Unido. Para produtos de países terceiros — como os Estados Unidos, com quem Londres está ansiosa para concluir um acordo de livre-comércio — entrarem na Irlanda do Norte e, se permanecerem, serão aplicados os direitos aduaneiros britânicos. Por outro lado, se as mercadorias (de países terceiros) se destinarem a entrar na UE, via Irlanda do Norte, as autoridades do Reino Unido aplicarão a tributação da UE. Caberá aos funcionários da alfândga britânica verificar os produtos quando entrarem na província e aplicar o Código Aduaneiro da União. A Irlanda do Norte mantém-se alinhada a um conjunto limitado de regras da UE, incluindo as relativas a mercadorias, por exemplo, as regras sanitárias para controles veterinários, as aplicáveis aos produtos agrícolas e o regime de auxílios estatais. Se o Reino Unido estabelecer acordos de livre-comércio com outros países, a Irlanda do Norte será beneficiada.

Aval da Assembleia norte-irlandesa

A Assembleia da Irlanda do Norte (Stormont) terá voz decisiva sobre a aplicação a longo prazo da legislação da UE neste território. Este “mecanismo de consentimento” refere-se à regulamentação de mercadorias e alfândegas, ao mercado único da eletricidade, ao Imposto sobre o Valor Acrescentado (IVA) e aos auxílios estatais. Na prática, significa que quatro anos depois do fim do período de transição — no final de 2020, mas que provavelmente será prorrogado por, no máximo, dois anos — a Assembleia poderá, por maioria simples, dar luz verde à manutenção da aplicação do direito da União ou votar pelo seu abandono. Neste último caso, o protocolo deixará de ser aplicado dois anos depois.

IVA

O último ponto que bloqueava a conclusão do acordo. Diz respeito ao imposto a ser aplicado aos produtos de primeira necessidade, para que não haja diferenças entre os impostos aplicados na província britânica da Irlanda do Norte e na República da Irlanda. Para evitar uma fronteira física entre os dois e proteger a integridade do mercado único europeu, as regras da UE em matéria de IVA continuarão a ser aplicadas na Irlanda do Norte. O serviço alfandegário do Reino Unido será responsável pela aplicação e cobrança deste IVA.

Grande acordo de livre-comércio

Como previsto anteriormente, o Reino Unido continuará a ser membro da União Aduaneira Europeia e do mercado interno da UE durante o período de transição, ou seja, pelo menos até o fim de 2020 e, no mais tardar, até o fim de 2022. Este tempo será usado para negociar um acordo de livre- comércio. Em sua “declaração política” revisada sobre as relações futuras, a UE promete um acordo “livre de direitos aduaneiros e cotas”. Em troca, Bruxelas exige “garantias” de Londres para criar condições equitativas.