Correio Braziliense, n. 20607, 24/10/2019. Mundo, p. 14Correio Braziliense, n. 20607, 24/10/2019. Mundo, p. 14

Evo denuncia golpe

Rodrigo Craveiro


De um lado, o presidente boliviano, Evo Morales, que se diz “quase certíssimo” da vitória no primeiro turno e intensifica os ataques à direita. “Um golpe de Estado está em andamento. Quero que o povo boliviano saiba que até agora humildemente sofremos para evitar a violência e não entramos em confronto”, declarou o socialista. De outro, o líder opositor Carlos Mesa, que denuncia fraude nas eleições do último domingo e convoca os simpatizantes a uma “mobilização permanente” em defesa do voto. Com a Bolívia mergulhada no limbo eleitoral e em meio a uma greve geral por tempo indeterminado, a Organização dos Estados Americanos (OEA) surpreendeu ontem ao defender que “a melhor opção” seria convocar um segundo turno. Até o fechamento desta edição, com 97,46% dos votos apurados, Morales tinha 46,68% contra 36,85% para Mesa — uma diferença de 9,8 pontos percentuais. Para evitar o segundo turno, Morales precisa de no mínimo 40% dos votos e uma vantagem de 10 pontos em relação ao segundo colocado.

“No caso de que, concluída a contagem, a margem de diferença seja superior a 10%, estatisticamente é razoável concluir que será por uma porcentagem ínfima. Devido ao contexto e às problemáticas evidenciadas neste processo eleitoral, continuaria sendo uma melhor opção convocar um segundo turno”, sustenta um informe elaborado pela missão de observadores da OEA.

Ivan Lima, ex-magistrado do Tribunal Supremo de Justiça da Bolívia, afirmou ao Correio que resta a contagem dos votos dos departamentos de Chuqisaca e Potosí, onde Morales possui mais de 80% de popularidade. “É possível que a diferença aumente e, por isso, o segundo turno seja descartado. O argumento de Mesa e da OEA diz respeito à paralisação da apuração por parte do TREP, o mecanismo de recontagem rápida de votos. Isso não representa fraude, atas nulas ou outro motivo que anule a eleição. Foi um erro suspender a recontagem.”

Lima acredita que, “pela lógica e pelo senso comum”, a fraude em uma ata eleitoral é impossível. “De cada mesa eleitoral se produz uma ata com 12 cópias, uma para cada um dos nove partidos e três outras para as autoridades eleitorais. A elas se somam os sistemas privados de controle dos partidos. Nenhuma ata apresentada foi impugnada até o momento”, comentou o ex-juiz. O governo dos Estados Unidos exortou a Bolívia a “respeitar os votos emitidos pelo povo”. “Nós deixamos claro que, se não fizerem isso, haverá sérias consequências em suas relações com a região”, advertiu Michael G. Kozak, subsecretário interino de Estado para Assuntos do Hemisfério Ocidental.

Violência

O impasse nas urnas acirrou os ânimos nas ruas. Desde segunda-feira, manifestantes queimaram escritórios do Tribunal Supremo Eleitoral (TSE) em Potosí (sudoeste), Sucre (sudeste), Cobija (norte) e Santa Cruz de La Sierra (leste) — capital econômica e reduto da oposição. Protestos violentos entre opositores e governistas eclodiram no bairro “Tres Mil”, em Santa Cruz, leal a Morales. Ao menos dois civis ficaram feridos.

“Convoco hoje todos os nossos compatriotas que acreditam na democracia à mobilização permanente, à mobilização em defesa do voto”, declarou Mesa, ontem, pouco antes de falar ao Correio (leia entrevista). “A OEA se deu conta de que existe possibilidade de uma convulsão social, produto de determinações ativadas a partir de cabildos (assembleias) em seis dos nove departamentos do país. Esses departamentos prometeram desconhecer Morales, caso haja o mínimo de irregularidades, e convocaram greves cívicas por tempo indefinido”, explicou Jorge Dulon, cientista político e professor radicado em La Paz. O especialista defende que, caso Morales consiga uma diferença de 10% em relação a Mesa, seria melhor um segundo turno, com mais garantias. “É uma das saídas políticas apregoadas pela oposição e por esferas da sociedade civil. Outra opção seriam eleições gerais, com um novo Tribunal Supremo Eleitoral”, disse.

Para Dulon, a denúncia feita por Morales sobre um suposto golpe se insere na estratégia política e na coerência de seu discurso de todo a vida: a perseguição do império ao governo socialista. “Ele se vitimiza para tentar obter a coesão de todos os seguidores, como movimentos sociais e organizações corporativas. Mesa foi bastante preciso ao anunciar que não tem intenção de romper o marco democrático”, lembrou. Ele admite “grande suscetibilidade de fraude” e adverte que o comportamento social tende a se multiplicar em todos os departamentos do país. “Haverá bloqueios, interrupção de serviços, etc, na busca de afogar o governo. Isso vem de um estalido social, próprio da sociedade que não responde a uma linha ideológica”, acrescentou.

Morales recebeu o apoio e a solidariedade do colega venezuelano, Nicolás Maduro. “É um golpe anunciado, cantado e, posso dizer, derrotado. O povo boliviano derrotará a violência”, avaliou o também socialista.

“Um golpe de Estado está em andamento. Quero que o povo boliviano saiba que até agora humildemente sofremos para vitar a violência e não entramos em confronto”

Evo Morales, presidente da Bolívia