Valor Econômico, n. 5239, 30/04/2021. Política, p. A4

 

Com 400 mil mortos, país pode ter 3ª onda

Gabriel Caprioli

30/04/2021
 
 

Risco de novo pico de casos cresce com lentidão da vacinação e afrouxamento das regras de isolamento, dizem especialistas

O Brasil ultrapassou ontem a triste marca de 400 mil óbitos causados pela covid-19, pouco mais de um ano após a primeira morte no país, segundo levantamento feito pelo consórcio de veículos de imprensa junto às secretarias estaduais de Saúde. Para especialistas ouvidos pelo Valor, o arrastado ritmo da vacinação e a flexibilização do isolamento social aumentam o risco de que o país seja atingido por uma terceira onda da pandemia.

No Amazonas, onde as ondas anteriores chegaram antes, a ameaça de um novo pico já é tratada como realidade pelas autoridades, que querem evitar um novo colapso poucos meses após a falência do sistema de saúde.

“O Brasil virou celeiro de novas variantes. Com a atual política adotada [em nível nacional], não há perspectiva de a pandemia rescindir em menos de dois ou até três anos”, diz Lucas Ferrante, biólogo, pesquisador e doutorando do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa). Para ele, a terceira onda pode se espalhar pelo país entre um mês e um mês e meio após atingir o Amazonas, caso surja uma nova variante. Ele chama atenção ainda para o risco de a transmissão do coronavírus se tornar endêmica (restrita ao Brasil) por vários anos, dado o baixo ritmo de vacinação e o afrouxamento de medidas sanitárias.

Para Gulnar Azevedo e Silva, professora titular de epidemiologia do Instituto de Medicina Social da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj) e presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), é real a possibilidade de uma terceira onda de covid-19 no país e, se a flexibilização for exagerada, ela pode vir até mais forte. “Se flexibilizar geral, o risco é muito grande”, afirma. Ela defende “lockdown” nacional para baixar de forma sustentada a curva de contaminação enquanto a vacinação não ganha velocidade. “Quando a curva baixar bastante podemos fazer testagem, rastrear os casos, isolar os doentes e os suspeitos, fazer quarentena dos contatos, o que deveria ter sido feito desde o início”.

Gerusa Figueiredo, epidemiologista e professora do Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da USP e integrante do grupo Ação Covid-19, diz que o país “é um campo fértil” para uma terceira onda por vários motivos: pouca vigilância epidemiológica, medidas de distanciamento social pouco efetivas, ajuda financeira insuficiente para que a população mais pobre se isole e lentidão na vacinação. “São quatro variáveis que podem predizer uma terceira onda”, diz, acrescentando que em se tratando desta pandemia os cenários são muito incertos.

O alerta sobre uma possível terceira onda partiu do próprio governador do Amazonas, Wilson Lima, que levou a Brasília, na semana passada, um plano de contingência e pediu apoio ao Ministério da Saúde. A média móvel de casos e mortes no Estado recuou do pico observado em janeiro, mas segue ao redor de 600 e 20 por dia, respectivamente - próximo ao observado em dezembro. O plano do governo amazonense inclui ampliar leitos clínicos e de unidades de terapia intensiva (UTI) exclusivos para covid-19, como foi feito na segunda onda.

Embora os casos e internações tenham se estabilizado, a repetição de um plano semelhante ao da segunda onda levanta críticas. Lucas Ferrante, que alertou sobre a segunda onda em artigo publicado na revista científica “Nature” (em agosto de 2020), diz que a contenção da segunda onda no Estado foi ineficiente e pode se repetir, uma vez que volta-se a discutir a flexibilização de medidas. “Transmissão estável não quer dizer que a pandemia esteja controlada”, afirma. Para ele a situação é grave, mas pode ser contornada com “lockdown” rígido, de 21 dias, e vacinação.

Ferrante alerta para o risco do surgimento de novas variantes com a maior circulação de pessoas, usando como exemplo a P.1, identificada em Manaus e apontada como agravante no colapso do sistema de saúde. “A P.1 surgiu em meados de novembro, quando a segunda onda já estava em andamento. O que gerou a segunda onda foi o afrouxamento das medidas restritivas”, diz.

Com potencial de transmissão e carga viral maiores, as variantes também podem gerar novas mutações em tempo potencialmente mais curto. A P.1, por exemplo, tem poder de transmissão duas vezes maior que a cepa que originou a pandemia, com uma carga viral até dez vezes maior. “Há registro de pacientes que foram infectados por mais de uma variante, aumentando o risco de duas variantes se combinarem e gerarem uma supervariante”, afirma.

O médico infectologista Marcus Lacerda, da Fundação de Medicina Tropical Dr Heitor Vieira Dourado (FMT-HVD), especialista em saúde pública da Fiocruz-Amazônia, vê com bons olhos o estabelecimento de um planejamento na tentativa de barrar uma terceira onda no Amazonas. “O fato de o governo estar se preparando para uma nova crise é positivo”, diz. Ele lembra que nenhum modelo preditivo funcionou completamente para antecipar o impacto de novas ondas ou o surgimento de variantes. “Interpreto que o governo quer deixar claro que está preocupado com ondas sucessivas. E tentando manter na cabeça da população que há essa possibilidade”, afirma.

Mesmo sendo cético em relação a previsões datadas de novas ondas, o médico destaca a possibilidade de o cenário no Amazonas se replicar no país. “O Brasil tem que olhar Manaus como um farol. Vivemos a primeira onda antes de todos, a segunda também. O que acontece em Manaus vai acontecer com o resto do país.”

Lacerda destaca ainda que, embora o governo estadual esteja fazendo o que está ao alcance ao prever mais leitos clínicos e de UTI, a vacinação - elemento que ainda não existia em janeiro - enfrenta problemas. “É uma ferramenta de prevenção poderosa, mas Manaus tem problema grave porque interrompeu a aplicação da primeira dose.” Por recomendação do Ministério da Saúde, a capital amazonense passou a imunizar, desde quarta-feira, somente a população que busca a segunda dose. A medida visa garantir a aplicação da segunda dose aos que já tomaram a primeira e deve durar entre dez e 15 dias.

Em contrapartida, Lacerda acha pouco provável a adoção de um lockdown mais restrito. “A fadiga social aumenta com a estabilização dos casos e o lockdown é mais factível para a população que tem o emprego garantido, que pode fazer home office. Não é a realidade da maior parte da população.” (Colaborou Ana Conceição)