Correio Braziliense, n. 21210, 20/06/2021. Política, p. 4

Pressão por cloroquina
20/06/2021



Telegramas, transcrições de telefonemas e e-mails enviados à CPI indicam que Bolsonaro fez "apelo" ao governo indiano para a exportação do insumo, alegando "questões humanitárias"

A história do combate à covid-19 no governo Bolsonaro é repleta de contradições. Vão desde a defesa intransigente de medicamentos como a cloroquina, que não tem eficácia comprovada contra a doença, até a crítica a vacinas ainda sem autorização da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), enquanto, nos bastidores, o próprio presidente tentava adquirir um imunizante reprovado pela agência por falta de condições higiênicas nos laboratórios. Ajudam a contar essa história os e-mails trocados por embaixadores do Brasil com a Índia e com os Estados Unidos e, até, a crise do oxigênio no Amazonas, onde integrantes da CPI da Covid investigam se houve um experimento do Executivo local e federal de imunidade de rebanho.

Se, no contexto de busca e negociação com vacinas promissoras, a CPI da Covid-19 indica que o governo federal se omitiu, em relação à demanda por exportação de cloroquina, o mesmo não ocorreu. Telegramas, transcrições de telefonemas e e-mails enviados à CPI em caráter sigiloso, e obtidos pelo Correio, mostram que Jair Bolsonaro fez "apelo" ao governo indiano para a exportação do insumo, alegando "questões humanitárias" e reivindicando em prol de duas empresas brasileiras privadas que produzem o medicamento.

A CPI acumula, até agora, 23 sessões, 19 depoimentos e 1,6 terabyte de documentos resultantes de pedidos de informação e quebras de sigilo. Senadores reclassificaram um terço desse material, que estava sob sigilo, mesmo que pudessem ser encontrados no Portal da Transparência, por exemplo. Ao todo, a comissão reclassificou 2,2 mil arquivos, sendo 1.636 documentos do Ministério das Relações Exteriores, 97 do Ministério da Saúde, 445 a respeito da crise de oxigênio ocorrida em Manaus e quatro contratos da Fiocruz. Mas o conto negacionista que os e-mails do Itamaraty revelam têm a busca por cloroquina como principal matéria-prima.

Em 18 de abril de 2020, por exemplo, Jair Bolsonaro ligou para o primeiro-ministro da Índia, Narendra Modi. O assunto era o medicamento. Afirmava que o país tinha "resultados animadores no uso da hidroxicloroquina em pacientes com covid-19". Eram os primeiros meses de pandemia no Brasil. Bolsonaro pedia a liberação de insumos da droga. "Precisamos, por uma questão humanitária, dos insumos farmacêuticos — em particular, de sulfato de hidroxicloroquina. O sucesso da hidroxicloroquina para tratar a covid-19 nos faz ter muito interesse na remessa indiana", disse. Havia 530kg de insumos para a fabricação do medicamento, que seria destinado à empresa EMS e à farmacêutica Apsen, que pertence ao empresário bolsonarista Renato Spallicci.

Posteriormente, em 15 de maio, por telegrama, segundo os requerimentos de informação da CPI, "a embaixada do Brasil agradece a governo da Índia pela autorização para exportação de 530kg de HCQ (hidroxicloroquina) da EMS, em 8 de abril, e 1.000kg para a Apsen em 9 de maio". No mesmo documento, o governo solicita uma nova liberação da droga.