O Estado de São Paulo, n. 46520, 28/02/2021. Política, p. A5

Pandemia molda tática eleitoral de Bolsonaro
Adriana Ferraz
Marcelo Godoy
28/02/2021



Um ano depois da chegada do novo coronavírus ao País, presidente deixa de lado agenda liberal e se aproxima de partidos do Centrão

Governo. Postura negacionista do presidente Jair Bolsonaro durante a pandemia do novo coronavírus é alvo de críticas; Brasil contabiliza, até agora, mais de 252 mil mortes por covid-19

A crise chegou ao País em 25 de fevereiro de 2020. Além do aspecto dramático que já contabiliza mais de 252 mil brasileiros mortos, o saldo político de um ano de pandemia do coronavírus é evidente. Sob fortes críticas pela condução da crise sanitária, o governo de Jair Bolsonaro assumiu uma feição menos liberal – a intervenção na Petrobrás é o exemplo mais recente – e mais associada à "velha política" que costumava rechaçar.

A aproximação com o Centrão – motivada em boa parte para frear as ameaças de impeachment – permitiu que Bolsonaro garantisse aliados no comando do Congresso e deixou mais clara sua articulação para a reeleição. Ao conseguir formar uma base, o presidente já molda sua candidatura e dispõe de mais alternativas partidárias até mesmo para sua filiação. Desde que deixou o PSL, em 2019, Bolsonaro segue sem partido.

Analistas ouvidos pelo Estadão ainda viram nesses últimos 12 meses o governo se afastar definitivamente do lavajatismo e deixar de lado o liberalismo, adotado como tática eleitoral na campanha de 2018. "As demandas liberais não são um terreno onde Bolsonaro se mova bem. E a Lava Jato foi se exaurindo, sobrando a ele para 2022 o Centrão e movimentos conservadores e autoritários", afirmou o cientista político José Álvaro Moisés.

Para a economista Ana Carla Abrão, esse afastamento da pauta liberal ocorreu quando Bolsonaro entendeu que essa agenda tem impacto em sua base eleitoral. "E isso vale para tudo: privatizações, reforma administrativa, tudo aquilo que coloque em xeque sua base eleitoral, que é definitivamente corporativista", disse a economista, sócia da Oliver Wyman.

Embora a pandemia tenha afetado a percepção das pessoas sobre governos, os efeitos sobre os planos de Bolsonaro devem ser "relativizados", na avaliação do cientista político e professor do Insper Carlos Melo. "O ano de 2020 se desenvolveu como avalanche que invadiu 2021, atravessando-o e lançando o País diretamente em 2022. Antecipou a disputa eleitoral, que só não está nas ruas porque as ruas estão forçosamente vazias", afirmou Melo. "Verdade que o presidente nunca desceu do palanque. Mas, desconfiado e competitivo ao extremo, tornou-se mais ansioso, temeroso e temerário."

Centrão. Alguns analistas veem o governo sustentado atualmente em uma "visão conservadora-autoritária" e no apoio do Centrão. "Ainda não sabemos qual desses dois vai prevalecer", disse o historiador Boris Fausto. O cientista político Marco Antonio Carvalho Teixeira, coordenador do curso de Administração Pública da FGV-SP, no entanto, considera que essa incerteza sobre os rumos da união com o Centrão já foi até colocada à prova com a prisão do deputado bolsonarista Daniel Silveira (PSL-RJ) – os partidos que formam o bloco partidário votaram majoritariamente contra a soltura do parlamentar.

"O Centrão faz cálculo político. Se os deputados perceberem que a reeleição de Bolsonaro está em risco, eles pulam do barco. Foi o que fizeram com Dilma Rousseff durante o processo de impeachment. Bolsonaro hoje tem essa base, que lhe dá sobrevivência no cargo, mas o acordo não é atemporal", afirmou Teixeira.

Negacionismo. Do ponto de vista da Saúde, no entanto, há um consenso de que a forma como o governo Bolsonaro lida com a pandemia só aprofunda o impacto da covid-19 na rotina dos brasileiros. No dia em que o País bateu recorde de mortes (1.582), na quinta-feira, o presidente contestou o uso da máscara como estratégia para conter a disseminação do vírus.

Comportamento que se repete. Bolsonaro já deu inúmeras declarações neste primeiro ano de pandemia tentando minimizar o risco da doença. Entre falas que consideravam o potencial do novo coronavírus "superdimensionado", o presidente comparou a covid-19 a uma "gripezinha", chamou de "histeria" a postura da imprensa e disse que não é "coveiro", ao ser questionado sobre as mortes. "A sociedade se incomoda muito quando o governo fala algum absurdo. A saúde é o limite", afirmou a economista Laura Müller Machado.

"O tom negacionista do governo impactou toda a condução da pandemia, principalmente porque o negacionismo fez com que não houvesse uma coordenação nacional centralizada, com um Ministério da Saúde forte que pudesse orientar os Estados e municípios", afirmou a bióloga Natália Pasternak, diretora-presidente do Instituto Questão de Ciência (IQC).

O maior sistema público de saúde do Ocidente, o SUS, não conseguiu sequer comprar agulhas e seringas ou mesmo distribuir testes para detectar a covid-19 – milhões deles ficaram parados, estragando nos estoques do governo. Cidades ficaram sem oxigênio nos hospitais e os brasileiros, sem vacina. Tudo virou disputa política, de olho em 2022.

Crise federativa. Se a crise foi aguda em todos os cantos do mundo, no Brasil ela teve características que aprofundaram seus efeitos sobre a economia e o ambiente político. Uma dessas características é a falta de coordenação entre o governo federal e os demais entes da Federação. A vacinação também se tornou um embate pessoal entre Bolsonaro e o governador de São Paulo, João Doria (PSDB), hoje, potencialmente, seu principal adversário na sucessão do Planalto.

Desde o início da pandemia, a relação entre governo federal, Estados e municípios é marcada por enfrentamentos e até, mais recentemente, investigações. O ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, é alvo de um inquérito para apurar omissão no colapso em Manaus. Sem perspectiva de mudanças no quadro de escassez de vacinas, governadores e prefeitos buscam soluções isoladas, o que tende a ampliar a desigualdade no acesso à Saúde no País.

Agenda. Economista e presidente do Insper, Marcos Lisboa vê a economia do País se degradando e a falta de uma agenda clara do governo para enfrentar desafios pós-pandemia. "Qual é a agenda do País? Se a pandemia voltar, vamos fazer quais medidas? Se não voltar, qual a agenda consistente e crível para ajustar e equilibrar as contas públicas e garantir que a dívida não saia de controle em quatro, cinco anos?", questionou.

Para Ana Carla Abrão, a aliança de Bolsonaro com as legendas do Centrão não deve proporcionar ao Brasil avanço em temas que ajudem na retomada da economia. "Não acredito num Centrão apoiando uma agenda de reformas estruturais. Acredito num Centrão que blinda o presidente e, junto dele, vai alavancar ações populistas que vão garantir as eleições de 2022. É, definitivamente, uma agenda eleitoral e não uma agenda pelas reformas."

Sem oferecer vacinas à população nem auxílio emergencial, Bolsonaro começa o segundo ano da pandemia com a aprovação na faixa dos 30%, mas com alianças bem desenhadas para a busca de seu principal objetivo: assegurar a reeleição em 2022. Essa é a única agenda clara que analistas veem no governo.

Cenário

"As demandas liberais não são um terreno onde Bolsonaro se mova bem. E a Lava Jato foi se exaurindo, sobrando a ele para 2022 o Centrão e movimentos conservadores e autoritários."

José Álvaro Moisés

CIENTISTA POLÍTICO

"Não acredito num Centrão apoiando uma agenda de reformas estruturais. Acredito num Centrão que blinda o presidente e, junto dele, vai alavancar ações populistas que vão garantir as eleições de 2022."

Ana Carla Abrão

ECONOMISTA