O Estado de São Paulo, n. 46855, 29/01/2022. Internacional, p.A15

 

Os obstáculos de Putin na Ucrânia

 

Fareed Zakaria

 

Somente uma pessoa sabe se a crise na Ucrânia levará a uma guerra, o homem que a iniciou: Vladimir Putin. Mas, até agora, o governo de Joe Biden tem reagido de maneira inteligente à escalada militar de Putin, com uma apropriada combinação de dissuasão e diplomacia. Washington conclamou os países europeus a permanecerem unidos, forneceu mais armas à Ucrânia e colocou algumas tropas em alerta elevado para sinalizar maior determinação. Os EUA também tornaram públicos os tipos de armamentos híbridos que a Rússia está empregando e sinalizaram as sanções que os russos deverão enfrentar se forem adiante com alguma invasão.

Washington também ofereceu a alternativa da diplomacia, definindo caminhos para EUA e Rússia trabalharem melhores maneiras de construção de confiança em relação a arranjos de segurança no Leste da Europa. Na semana passada, descrevi interesses e capacidades da Rússia nesta crise. É vital entender também sua fraqueza.

“Quando Putin tomou a Crimeia, em 2014, ele perdeu a Ucrânia”, escreve Owen Matthews num instigante ensaio. Depois que declarou a independência, em 1991, a Ucrânia ficou dividida entre um segmento abertamente pró-rússia de sua população e outro mais nacionalista. Mas, ao anexar a Crimeia e mergulhar o leste ucraniano num conflito, escreve Matthews, Putin impulsionou o nacionalismo ucraniano e alimentou um crescente ressentimento anti-rússia.

E a matemática não o ajuda. Putin tirou milhões de ucranianos pró-rússia que vivem na Crimeia e em Donbas do cálculo político do país – habitantes de Donbas não votam em eleições ucranianas porque a região é instável demais. Como resultado, disse um político ucraniano, o número de assentos pró-rússia no Parlamento da Ucrânia diminuiu de uma profusão para 15% do total.

Em retrospecto, se o objetivo de Putin fosse deixar a Ucrânia instável e fraca, teria feito muito mais sentido manter essas duas regiões ucranianas sob controle do país, dando apoio a forças e políticos prórússia de variadas maneiras, para que eles pudessem atuar como uma quinta-coluna dentro da Ucrânia, sempre insistindo que Kiev forjasse laços mais próximos com Moscou. Em vez disso, a Ucrânia é agora composta por uma população orgulhosamente nacionalista e muito mais anti-rússia.

DEPENDÊNCIA. Os objetivos de Putin são provavelmente enfraquecer a Ucrânia e fazê-la mais dependente da Rússia, mas também dividir o Ocidente e tornar a Otan menos eficaz. Em relação à aliança, o que está ocorrendo é o oposto. A Otan, que havia muito buscava uma razão de ser no pós-guerra Fria, foi energizada pela ameaça russa.

A Dinamarca está enviando uma fragata para o Mar Báltico. A Holanda está despachando caças para a Bulgária. A França se ofereceu para colocar tropas na Romênia sob comando da Otan. A Espanha mobilizou navios de guerra. Os EUA colocaram 8,5 mil soldados em alerta elevado, caso eles precisem ser mobilizados para o Leste da Europa. Alguns na Finlândia e na Suécia estão reconsiderando sua antiga e tradicional neutralidade.

O mais significativo sucesso de Putin ocorreu na Alemanha. A nova coalizão alemã de governo expressou dúvidas a respeito de armar a Ucrânia, colocar a Rússia sob severas sanções ou cancelar o Nord Stream 2, o gasoduto pelo qual a Rússia poderia mandar gás natural diretamente para a Alemanha e toda a Europa evitando a Ucrânia.

Essa abordagem reflete um antigo desejo alemão de manter um relacionamento especial com a Rússia – uma atitude expressa durante a Guerra Fria por uma abordagem que os alemães chamaram de “Ostpolitik”.

PRESSÃO. Mais recentemente, a ex-chanceler Angela Merkel, que nasceu na Alemanha Oriental e viveu sob o comunismo, foi mais determinada ao negociar com Putin. Após sua partida, a Alemanha parece estar retornando à busca por uma posição intermediária entre Oriente e Ocidente. Washington está atento a esse problema, enviando o diretor da CIA, William Burns, a Berlim, e convidando o sucessor de Merkel, Olaf Scholz, a Washington para uma reunião com o presidente, Joe Biden.

Matthews aponta que Putin não se beneficiaria de uma guerra, especialmente se as sanções em discussão contra a Rússia forem colocadas em prática. Ainda que Putin tenha armazenado formidáveis reservas no exterior, restringir as exportações de gás e petróleo da

Rússia devastaria a economia do país. A maioria dos jovens adultos russos – que seriam convocados para lutar – não se empolga com uma guerra contra a Ucrânia, que eles consideram positivamente. Os índices de aprovação de Putin caíram consideravelmente.

VISÃO EQUIVOCADA. Isso não significa que a guerra é impossível, nem improvável. Guerras podem ocorrer por causa de percepções e entendimentos equivocados – e até mesmo porque, quando encurralados contra as cordas, países podem não enxergar um caminho para a desescalada.

O chanceler russo afirmou que as respostas por escrito do Ocidente às demandas russas não trataram do “tema principal”, expressão pela qual ele se refere à adesão da Ucrânia à Otan. Na verdade, é improvável que a Ucrânia se torne membro da Otan no futuro próximo. A Otan opera segundo consensos, e há pouco acordo na aliança em relação ao tema. Alemanha e Hungria possuem profundas reservas sobre a adesão ucraniana.

Ainda assim, os EUA não podem – e não deveriam – renunciar à possibilidade de a Ucrânia aderir à Otan futuramente. Um estreito corredor entrecorta essas duas realidades, um espaço para a diplomacia criativa evitar uma guerra que poderia consumir as energias de ambos os lados por anos.