O Globo, n. 32055, 12/05/2021. País, p.4

 

Diretor da Anvisa confirma pressão por bula da cloroquina e marca distância de Bolsonaro

 

Um dos objetivos de senadores oposicionistas e independentes é verificar a razão da demora para a análise definitiva do imunizante russo Sputnik V
 
André de Souza
Júlia Lindner
 
 
 O diretor-presidente da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), Antonio Barra Torres, confirmou que esteve em uma reunião no Palácio do Planalto, no ano passado, na qual foi cogitada a possibilidade de mudar a bula da cloroquina para que o medicamento fosse indicado no tratamento da Covid-19. Em depoimento à CPI da Covid nesta terça-feira, Barra Torres disse que rejeitou prontamente a ideia por "não ter cabimento". A informação foi citada em depoimento pelo ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta.
— Isso provocou uma reação talvez deseducada, deselegante minha. Porque, talvez Vossa Senhoria não saiba, mas aquilo não poderia ser, porque só quem pode modificar uma bula de um medicamento registrado é a agência reguladora daquele país, mas desde que solicitado pelo laboratório responsável por aquele produto. Isso me causou uma reação mais brusca de que 'isso não tem cabimento, isso não pode'. A reunião nem durou muito mais tempo — afirmou Barra Torres.
Segundo o presidente da Anvisa, estavam na reunião, além dele, o então ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, o então ministro da Casa Civil, Walter Braga Netto, e a médica Nise Yamaguchi. Mas não se recorda da presença do então ministro da Secretaria-Geral, Jorge Oliveira, como foi apontado por Mandetta.

Ainda de acordo com Barra Torres, quem perguntou sobre a possibilidade de mudança da bula foi Nise Yamaguchi, que parecia "mobilizada" em torno do assunto. Ele não soube dizer, no entanto, quem foi o responsável pela ideia.

Depois comentou novamente a postura de Yamaguchi:

— Ela fez uma proposta absurda. Nenhum de nós aqui pode [mudar a bula]. Só o laboratório.

Barra Torres afirmou que, até o momento, as informações vão contra a possibilidade do uso da cloroquina no tratamento da Covid-19. Para ele, o tratamento precoce "não contempla essa medicação, e sim a testagem, o diagnóstico precoce, observação dos sintomas, e combatê-los o quanto antes".

O diretor-presidente da Anvisa também disse, durante depoimento, que a agência nunca trabalhou em protocolos para uso da hidroxicloroquina no tratamento da Covid-19. A Anvisa, de acordo com ele, só editou protocolos de pesquisa.

— O que houve de aprovação de protocolo foi de pesquisa, estudo, não de uso. Os protocolos de uso já haviam no ministério, mas aí é questão do Ministério da Saúde. A Anvisa não aprova protocolos de uso em lugar nenhum. Anvisa não trabalha com off label. Não se tratou de protocolo de tratamento — ressaltou.

Governista critica 'crime impossível'

O senador Marcos Rogério (DEM-RO) criticou a oposição e disse que estão querendo tratar de um "crime impossível", ao mencionar a reunião no Planalto em que se cogitou mudar a bula da cloroquina.

— É a clássica figura do crime impossível. É como você tentar matar alguém dando tiro só com pólvora ou com bala de alguém. Crime impossível. Ele já respondeu isso hoje. Pergunto, é possível mudar bula de remédio por decreto? Crime impossível. Eu não sei a quem interessa essa cortina de fumaça. Estão repetindo tantas vezes isso aqui que parece que querem inventar crime onde não tem — disse Marcos Rogério.

O presidente Omar Aziz (PSD-AM) afirmou que ninguém está incriminando ninguém porque Barra Torres é ouvido na condição de testemunha. Aziz também relembrou a menção de que o filho do presidente, o vereador Carlos Bolsonaro (RJ), acompanhava reuniões e que não há crime algum nisso:

— Não. Tiveram pessoas que me perguntaram sobre o Carlos Bolsonaro. Eu não vejo problema nenhum do Carlos Bolsonaro estar numa reunião. Qual é o problema? Eu fui governador e muitas vezes tiveram pessoas que não eram secretários que participaram de reunião. Isso não quer dizer nada. Não vejo crime, não dá para criminalizar o que não existe. Agora, pólvora pode matar, [e só você aspirar que vai ver.

No início da sessão, Barra Torres ressaltou que a agência é “pautada na transparência e na publicidade dos seus atos”. Os diretores da Anvisa também acompanharam o depoimento.

Questionado se as declarações do presidente Jair Bolsonaro, dos filhos dele e do ex-ministro das Relações Exteriores Ernesto Araújo atrapalharam a importação de produtos chineses e indianos, como a demora na importação do ingrediente farmacêutico ativo (IFA) das vacinas, ele disse não ter "informação do nexo causal".

Após o relator, senador Renan Calheiros (MDB), ler várias declarações do presidente Jair Bolsonaro contra vacinas e questionar o que Barra Torres achava a respeito, o presidente da Anvisa deixou claro que pensa de forma diferente. E ainda recomendou que a população não siga esse tipo de conduta: 

— Todo o texto que Vossa Excelência leu vai contra tudo o que nós temos preconizado nas nossas manifestações públicas. Então entendemos, que ao contrário do que o senhor acabou de ler, que a política de vacinação é essencial. Temos que vacinar as pessoas. Não é pelo fato de vacinar que vai abrir mão de uso e máscara, distanciamento e álcool em gel.

Depois acrescentou:

— Nós temos sim que nos vacinar. Se todos nós estamos sentados nesta sala é porque um dia pai, mãe ou responsável nos levou pela mão para vacinar. Discordar de vacina, falar contra vacina não guarda uma razoabilidade histórica inclusive. E essas outras medidas inclusive. Eu penso que a população não deva se orientar por condutas dessa maneira. Ela deve se orientar por aquilo que está sendo preconizado principalmente pelos órgãos da linha de frente no enfrentamento à doença.

'A conduta do presidente difere da minha'

Barra Torres deixou claro que tem ideias divergentes do presidente Jair Bolsonaro sobre medidas de distanciamento social e uso de máscaras durante a pandemia da Covid-19. O presidente da Anvisa ressaltou que suas ações são baseadas no que a ciência determina.

— Destarte da amizade que tenho com o presidente, a conduta do presidente difere da minha nesse sentido. As manifestações que faço têm sido todas no sentido do que a ciência determina. Na última live que participei com o presidente, inclusive, permaneci o tempo de todo de máscara. São formas diferentes, de pessoas diferentes — disse o presidente da Anvisa.

Indagado sobre a sua participação, ao lado do presidente da República, em uma manifestação em março do ano passado, Barra Torres afirmou que ainda não havia orientação para uso de máscaras no momento. Ele disse que, se tivesse pensado melhor, não teria ido ao ato.

— Estive em conversa particular com o presidente. Quando cheguei, ele se deslocou para movimentação... Cumprimentei com o cotovelo. Tirei algumas fotos. Cada um foi para seu lado. Eu tenho plena ciência que, se tivesse pensado mais cinco minutos, não teria feito. Não refleti na imagem negativa. Depois disso, nunca mais houve esse tipo de comportamento meu — afirmou.

O senador Humberto Costa (PT-PE) perguntou a opinião de Barra Torres sobre as declarações de Bolsonaro contra a Coronavac após ser relatada a morte de um voluntário no ano passado. Depois, foi constatado que o óbito não teve relação com a vacina. 

— Eu entendo que não ajuda. Eu coloco esse tipo de declaração numa verdadeira guerra política numa área que deveria ficar na ciência — disse o presidente da Anvisa.

Sem citar o nome do ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello, o senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP) citou uma frase que ele disse após ser desautorizado pelo presidente Jair Bolsonaro quanto à compra da Coronavac: "um manda e outro obedece". E perguntou se Barra Torres concordava com isso na política de saúde.

— Não, de maneira nenhuma. Qualquer ação de saúde é pautada por ciência. Hierarquia é outra questão — respondeu o presidente da Anvisa.

A senadora Eliziane Gama (Cidadania -AM) citou a aglomeração promovida por Bolsonaro no último fim de semana, quando ele se encontrou com motociclistas.

— Sou contra qualquer tipo de aglomeração nesse sentido — comentou Barra Torres.

Quebra de patentes

Questionado sobre a quebra de patente de vacinas, Barra Torres afirmou:

— A vacina da Pfizer, por exemplo, é de altíssima tecnologia. O Brasil não domina essa tecnologia. Tem sentido uma quebra dessa natureza? A meu juízo, não tem sentido, porque quebra e não produz. Não adianta nada.

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Barra Torres disse não concordar com a tese da imunidade de rebanho, ou seja, de deixar o vírus circular para que um número suficiente de pessoas pegue a doença, se imunize dessa forma e, assim, a doença pare de se propagar.

Questionado pelo senador governista Eduardo Girão (Podemos-CE) sobre a proxalutamida, um remédio em que houve pesquisa sobre seu uso para tratar Covid-19, Barra Torres disse que a Anvisa recebeu um grupo que estava estudando o produto. A agência informou que seria preciso primeiramente fazer um contato com a Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep). Depois disso, o grupo não retornou mais.

O líder do governo no Senado, Fernando Bezerra (MDB-PE), elogiou o depoimento de Barra Torres e disse que ficou evidenciado que a Anvisa é "uma agência de Estado, que não sofre pressões indevidas de quem quer que seja". Bezerra cumprimentou Barra Torres e todo o corpo técnico da Anvisa pelo trabalho.

— Esperamos que a gente possa acelerar, sim, as análises dos novos pedidos de registro de vacina para que a gente possa ampliar a velocidade do programa de imunização brasileiro —afirmou Bezerra.

Pedido para reconvocação de Queiroga

No início da sessão, o senador Humberto Costa (PT-PE) defendeu nova convocação do ministro da Saúde Marcelo Queiroga. Ele citou reportagem do GLOBO mostrando que a atual gestão seguiu distribuindo para a rede pública hidroxicloroquina como política de combate ao coronavírus, embora o remédio seja ineficaz para tratar a Covid-19. Entre o fim de março e abril, após a posse do ministro, foram entregues 127,5 mil comprimidos a dois municípios do interior de São Paulo. No depoimento dado na semana passada, ao ser questionado por senadores, o Queiroga disse que não havia autorizado e que desconhecia remessas recentes dos medicamento.

O senador governista Marcos Rogério (DEM-RO) criticou a tentativa de convocar novamente Queiroga. Segundo ele, estão tentando tirá-lo de seu trabalho para colocá-lo de "castigo" na CPI.

— Ficam falando aqui o tempo todo: cloroquina, cloroquina, cloroquina. E corrupção? E roubalheira? E desvio de dinheiro? Isso nos interessa também — disse Rogério.

O senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE) reclamou das manifestações feitas pelos colegas que atrasam a tomada dos depoimentos. Depois e 45 minutos do horário previsto, o presidente da Anvisa ainda não tinha começado a falar. Assim, Vieira sugeriu que as sessões comecem às 9h, e não mais às 10h. Ficou então acertado que elas serão antecipadas em uma hora, com exceção dos próximos depoimentos, em que já foi fixado um horário com os depoentes.