O Globo, n. 32051, 08/05/2021. País, p.7

 

 

A política embaça a ciência na primeira semana da CPI

 

MIGUEL LAGO* opais@ogl

 

O COVID ICC começou. Na terça-feira, o senador Luiz Carlos Heinze (PP-RS) abriu seu discurso se dirigindo ao ex-deputado federal e ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta (DEM-MS): “infelizmente é uma CPI política”. O parlamentar sugeriu que a comissão seria muito mais baseada em diferenças políticas do que em fatos concretos. Os debates deixam claro: as falsas equivalências criadas pela política podem se sobrepor às controvérsias científicas. Quase um terço dos membros da comissão dirigiu ao ex-ministro argumentos em defesa do chamado “tratamento precoce”. Os senadores Eduardo Girão (Podemos-CE), Jorginho Mello (PL-SC), Ciro Nogueira (PP-PI), Marcos Rogério (Dem-RO) e Heinze foram todos enfáticos nessa defesa - às vezes recorrendo a experiências pessoais, às vezes aos relatórios dos médicos, ou mesmo a estudos incertos. Para o telespectador do CPI, os argumentos a favor e contra o tratamento precoce são apresentados de forma relativamente bem distribuída, dando a impressão de haver uma equivalência entre as posições. Na ciência, entretanto, essa polêmica é infinitamente menor e o assunto muito mais consensual. Em um ano de intensa produção acadêmica, até o momento nenhuma pesquisa "padrão ouro" provou que existem remédios que previnem a infecção ou o desenvolvimento da doença causada pelo SARSCoV-2. Um painel da revista BMJ com meta-análise de 196 clínicas estudos, com mais de 70 mil pacientes, concluem que a hidroxicloroquina e a ivermectina não parecem afetar positivamente os resultados de saúde. Provar a eficácia de um medicamento requer métodos científicos estritos, como: a) grupos de controle - grupos de voluntários recebem a droga e outro esquema terapêutico alternadamente; B) randomização - os voluntários são incluídos nos grupos de forma aleatória; c) e o “duplo-cego” - voluntários e cientistas não têm ideia de quem recebeu o quê. E esses procedimentos são importantes para evitar vieses, garantir relevância estatística e descartar o efeito placebo (quando a pessoa se sente melhor por acreditar no tratamento). Por fim, os esforços e resultados da pesquisa são publicados em uma revista científica, após serem revisados ​​por especialistas independentes. Nenhum estudo que viesse a demonstrar algum benefício do chamado “kit cobiçoso” passou por todos esses filtros de qualidade, que são em sua maioria estudos observacionais, sem relevância estatística. Uma pesquisa em revisões sistemáticas nas revistas científicas de maior prestígio no mundo (as da categoria A1 ou A2) não revela sequer uma que seja capaz de apontar benefícios. E é cada vez maior o número de publicações nessas mesmas revistas que alertam para a possibilidade de agravamento dos efeitos da doença em pacientes tratados com hidroxicloroquina. Foi norteado por essa robustez científica que a OMS publicou, no dia 1º de março deste ano, recomendação contrária ao uso da cloroquina e da hidroxicloroquina.

A ciência trata suas controvérsias a partir de evidências. A política os tira de seus antagonismos, e com isso promove falsas equivalências em temas já resolvidos anteriormente pela ciência, apenas para alimentar os conflitos do jogo político. O senador Heinze está, portanto, coberto pela razão. Eles estão politizando o ICC, estão politizando a ciência. Naquela primeira semana, quem protagonizou esse processo, insistindo na defesa do “tratamento precoce”, foi justamente o grupo de senadores do governo do qual Heinze faz parte.

(*) Miguel Lago é diretor executivo de IEPs e professor adjunto da School of International Public Affairs da Columbia University (EUA)