O Estado de São Paulo, n. 46510, 18/02/2021. Espaço Aberto, p. A2

Genômica, vacinas e o futuro da pandemia de covid-19
Cristina Toscano
Luiz Fernando Lima Reis
18/02/2021



Por mais de um ano convivemos com ondas de transmissão, acúmulo de mortes, desenvolvimento de vacinas e, hoje, discutimos as variantes, representadas por mutações no genoma do Sarscov2, causador da pandemia. Embora a covid-19 seja novidade, os coronavírus já eram nossos conhecidos, infectando animais e, por vezes, causando doença respiratória em humanos. Já em duas ocasiões causaram impacto significativo na saúde pública, primeiro com a Síndrome Respiratória Aguda Grave (Sars), em 2002, e depois com a Síndrome Respiratória do Oriente Médio (Mers), em 2012.

O material genético do coronavírus é o ácido ribonucleico (RNA). Quando o vírus entra na célula, libera o RNA, que contém as instruções necessárias para tornar aquela célula humana uma fábrica de partículas virais. Durante esse processo de multiplicação viral pode haver pequenos erros na replicação do RNA, que causam as mutações, que, por sua vez, podem resultar em novas variantes virais. Organismos que têm RNA como material genético sofrem mais mutações do que os compostos por DNA, pois têm menos mecanismos de reparação desses erros. No entanto, os coronavírus não se destacam pela alta taxa de mutação, como observado no HIV ou no vírus influenza. Desde o início da pandemia de covid-19 sabíamos que haveria mutações e, considerando a disseminação global do vírus, mais e mais mutações aparecerão e novas variantes virais surgirão.

Mas qual o impacto dessas mutações? Para essa discussão, vamos falar das vacinas contra a covid-19. As vacinas se fundamentam em dois mecanismos de ativação do sistema imune, de defesa. O mecanismo humoral, pela produção de anticorpos, alguns deles neutralizantes direcionados à proteína S da superfície viral. A proteína S (spike) é responsável pela entrada do vírus na célula e é o principal alvo das vacinas desenvolvidas contra a covid-19. O mecanismo celular ativa células de defesa, chamadas linfócitos T, que são estimuladas a eliminar células já infectadas pelo coronavírus, contribuindo para a redução da replicação do vírus. Ainda não sabemos ao certo qual o papel da resposta imune celular na prevenção, reinfecção e gravidade da covid-19. Mas sabemos que a resposta imune mediada por anticorpos é mais suscetível ao impacto de mutações.

Do ponto de vista evolutivo, novas variantes virais serão selecionadas se as mutações conferirem a elas alguma vantagem competitiva, como, por exemplo, maior transmissibilidade ou capacidade de evadir a resposta imune, seja ela decorrente de infecção prévia ou vacinação. E é nesse contexto que o monitoramento e a avaliação contínua de novas variantes do Sars-cov2 é tão relevante. Considerando que, quanto mais o vírus circular, maior a probabilidade de surgimento de novas variantes, estratégias de redução da transmissão viral e contenção da disseminação de novas variantes são fundamentais.

Temos hoje dados relacionando algumas mutações a maior capacidade de disseminação do vírus. Isso foi observado nas variantes da Inglaterra, da África do Sul e, agora, parece ser o caso na detectada em Manaus. Também já sabemos que essas três variantes podem impactar negativamente a eficácia de algumas das vacinas já disponíveis. No entanto, e muito relevante, nenhuma das variantes até hoje descritas se mostrou completamente resistentes às vacinas disponíveis.

É por isso que acelerar ao máximo a velocidade de vacinação da população é questão central no controle da pandemia. Além de reduzir o número de hospitalizações e mortes pela covid-19, ao desacelerar a transmissão do vírus, reduziremos as possibilidades de surgirem novas mutações. Para isso é fundamental uma ação central, estratégica e planejada da parte do governo, articulada com produtores de vacinas. É fundamental que tenhamos a capacidade de monitorar as mutações do vírus por meio de redes de vigilância genômica, o que também requer coordenação central para aumentar a capacidade de sequenciamento em nível nacional, bem como a organização e o uso dos dados gerados para implementação de medidas de saúde pública para conter novas variantes. O conhecimento e mapeamento de novas variantes é crítico para direcionar as adaptações necessárias para garantir a eficácia das vacinas contra novas variantes.

Por tudo isso, em todo o mundo o foco no enfrentamento da pandemia, hoje, são a vacinação em massa, o distanciamento social e o monitoramento de novas variantes. Essas ações devem se basear no conhecimento, para que não tenhamos novamente uma pandemia de desinformação, também no campo das variantes.

No Brasil, a estrutura para podermos realizar essas ações estratégicas já existe, por meio do Sistema Único de Saúde (SUS) e de uma robusta rede de pesquisa. É com foco nessas ações estratégicas baseadas em dados epidemiológicos e virológicos, nas evidências científicas e no contínuo desenvolvimento tecnológico das vacinas que conseguiremos superar esta pandemia.