O Estado de São Paulo, n. 46505, 13/02/2021. Notas & Informações, p. A3

O direito ao esquecimento
13/02/2021



Ao rejeitar por maioria de votos a introdução, por via judicial, do chamado direito ao esquecimento na ordem legal brasileira, o Supremo Tribunal Federal (STF) tomou uma decisão fundamental para preservar a liberdade de expressão no País. Apesar de não ser previsto pelo direito positivo, o tal direito ao esquecimento vinha sendo pleiteado em diferentes instâncias judiciais por pessoas que solicitavam a remoção de conteúdo em artigos e reportagens publicados por órgãos de comunicação e pela internet.

O caso julgado envolve uma reportagem da TV Globo levada ao ar em 2004, sobre o assassinato de Aída Curi, em 1958, no Rio de Janeiro, depois de ter sido surrada e estuprada. Os criminosos foram dois playboys e um porteiro que os ajudou a jogar o corpo do alto de um edifício em Copacabana. O caso foi julgado três vezes e o porteiro e um dos rapazes foram inocentados da acusação de homicídio e condenados por atentado ao pudor e tentativa de estupro. O outro rapaz, que tinha menos de 18 anos, foi condenado por homicídio e encaminhado ao Sistema de Assistência ao Menor. Como a opinião pública ficou revoltada com essas decisões, desde então os meios de comunicação relembram e comentam as punições pouco rigorosas aplicadas.

Além de alegar que não autorizou o uso de imagem da vítima, sua família pediu indenização por dano moral. Também pleiteou que o crime fosse “desindexado”. Ou seja, que deixasse de aparecer na mídia e nas primeiras páginas de resultados das plataformas de pesquisa, sob a justificativa de que o crime ocorreu há muito tempo, não fazendo assim mais parte do conhecimento comum da população.

Essa discussão não é nova. O direito ao esquecimento apareceu na Europa após a 2.ª Guerra Mundial, favorecendo nazistas e fascistas que exerceram papéis secundários nas ditaduras de Hitler e Mussolini. Trata-se de questão complexa, pois esse tipo de reivindicação, baseado no direito à intimidade e à privacidade, colide com o direito da liberdade de expressão e informação, que está na essência da democracia. A ação – que foi julgada como sendo de repercussão geral, o que faz com que a decisão seja aplicada a todos os processos que tratam do mesmo tema – envolve assim uma questão clássica do direito: a colisão entre princípios constitucionais.

Na doutrina, alguns especialistas em direito civil defendem a criação do direito ao esquecimento, com base na tese de que ninguém é obrigado a conviver para sempre com erros pretéritos. Também alegam que o direito ao esquecimento está no rol dos chamados direitos de personalidade. Os especialistas em direito público, contudo, refutam essa tese. Para eles, se as informações publicadas pela mídia e pelas plataformas digitais tratam de fatos reais, impedir sua republicação seria uma forma de “censura pelo retrovisor”. Afirmam, ainda, que não faz sentido proibir os órgãos de comunicação de publicar notícias sobre um caso só pelo fato de ser antigo.

No julgamento do STF, prevaleceu o entendimento dos publicistas. Segundo o relator, Dias Toffoli, cujo parecer foi acompanhado pela maioria dos ministros, o direito ao esquecimento é incompatível com os direitos previstos pela Constituição no capítulo das garantias fundamentais. Além disso, eventuais excessos ou abusos no exercício da liberdade de expressão e do direito de informação, como publicação de mentiras e fatos desatualizados, podem ser reparados nas esferas cível e criminal, afirmou.

Ao combinar a liberdade constitucional de informação em todas as suas formas de expressão com a proteção pontual dos direitos da personalidade pelo direito civil e penal, o STF tomou uma decisão sensata. De um lado, porque deteve a expansão de uma indústria de ações judiciais que vinha crescendo no País, com o objetivo de impedir a veiculação, pelos meios de comunicação, de documentos e retrospectivas históricas. De outro, porque, ao reafirmar o direito de informar e ser informado, preservou a liberdade de imprensa justamente em um período em que ela vem sendo ameaçada por governantes autoritários e populistas.