O Estado de São Paulo, n. 46504, 12/02/2021. Política, p. A4
Supremo rejeita 'direito ao esquecimento' no País
Paulo Roberto Netto
12/02/2021
Judiciário. Ministros decidem que proibição de publicação ou exibição de fato antigo é incompatível com a Constituição por atingir a liberdade de expressão e o acesso à informação
O Supremo Tribunal Federal (STF) rejeitou por nove votos a um o pedido de reconhecimento do chamado "direito ao esquecimento", no qual uma pessoa poderia pedir à Justiça para proibir a publicação ou exibição de um fato antigo, ainda que verdadeiro, sob justificativa de defesa da intimidade. O entendimento da Corte cria precedentes que devem modular decisões sobre o tema em todo o País.
O julgamento foi iniciado na semana passada e concluído na tarde de ontem, com a fixação da tese de que direito ao esquecimento é incompatível com a Constituição, e que eventuais abusos e excessos da liberdade de expressão devem ser analisados caso a caso.
A proposta foi elaborada a partir do voto do ministro Dias Toffoli, que foi acompanhado pelos ministros Kassio Nunes Marques, Alexandre de Moraes, Rosa Weber, Cármen Lúcia, Ricardo Lewandowski, Gilmar Mendes, Marco Aurélio Mello e o presidente do STF, Luiz Fux. O único que divergiu foi o ministro Edson Fachin.
Em seu voto, Cármen Lúcia destacou que um direito ao esquecimento amplo como se buscava no Supremo seria um "desaforo" para a sua geração.
"Em um país de triste desmemória como o nosso, discutir e julgar o esquecimento como direito fundamental neste sentido aqui adotado – de alguém poder impor o silêncio e até o segredo de fato ou ato que poderia ser de interesse público – pareceria, se existisse essa categoria no Direito, um desaforo para a minha geração", afirmou a ministra. "Minha geração lutou pelo direito de lembrar".
Lewandowski, por sua vez, afirmou que o chamado direito ao esquecimento jamais correspondeu a um instrumento jurídico, mas sim a uma "aspiração subjetiva de uma pessoa que sente desconforto psíquico com fatos ocorridos no passado".
O decano do Supremo, ministro Marco Aurélio Mello também acompanhou o entendimento da maioria, frisando que a Constituição não permite restrições à liberdade de expressão, pensamento e informação. "Não cabe numa situação como essa simplesmente passar a borracha e partir-se para um verdadeiro obscurantismo."
Fux argumentou que o instrumento "não pode reescrever o passado e nem obstaculizar o acesso à memória, o direito de informação ou a liberdade de imprensa".
Crime. O recurso em discussão envolve uma ação movida pela família de Aída Curi, assassinada em 1958 no Rio de Janeiro. O crime teve ampla cobertura midiática à época e, em 2004, foi reconstituído pelo programa Linha Direta, da TV Globo. Inicialmente, a família de Curi solicitou que o episódio não fosse ao ar e, após a sua exibição, acionou a Justiça em busca de indenizações e pelo "direito ao esquecimento" do caso.
Os ministros também formaram maioria para negar indenizações à família Curi. Os únicos votos proferidos a favor da reparação partiram de Marques e Gilmar Mendes. Apesar de não reconhecerem o direito ao esquecimento, os dois ministros vislumbraram violação à intimidade de Aída Curi.
Na semana passada, o ministro Dias Toffoli votou contra o direito ao esquecimento por considerá-lo incompatível com a Constituição ao restringir "direitos da população de serem informados sobre fatos relevantes da história social".
Isolado na divergência, Fachin foi o único que reconheceu a existência do direito ao esquecimento. No entanto, destacou que o caso de Aída Curi não se enquadraria neste contexto pois a reportagem do Linha Direta apenas registrou a trágica realidade da época e do crime.
"Eventuais juízos de proporcionalidade, em casos de conflitos ao direito ao esquecimento e a liberdade de expressão, devem sempre considerar a posição de preferência que a liberdade de expressão possui, mas também devem preservar o núcleo essencial dos direitos da personalidade", afirmou Fachin.
Na abertura do julgamento, o advogado que representa a família Curi, Roberto Algranti Filho, sustentou o direito de o crime não ser relembrado sob risco de causar "perpetuação de uma dor". Segundo ele, o argumento de que o reconhecimento do direito ao esquecimento não atingiria a atividade da imprensa não se sustentaria. "Refuto o argumento baseado de que políticos tentarão apagar seus malfeitos. Eles poderão até tentar, mas dificilmente conseguirão o direito ao esquecimento dada a relevância social e política do controle das atividades políticas por parte da imprensa."
Juristas ouvidos pelo Estadão divergiram sobre o entendimento da Corte em relação ao direito ao esquecimento. Segundo alguns especialistas, a Constituição já prevê instrumentos que podem ser acionados em casos semelhantes, enquanto outros alegam que o direito ao esquecimento é algo fundamental para o século 21.
Dos 11 ministros do Supremo Tribunal Federal, um não votou no julgamento que rejeitou a tese do "direito ao esquecimento" no País. O ministro Luís Roberto Barroso não participou das sessões realizadas nesta semana porque se declarou impedido.
VOTOS
CONTRA
Dias Toffoli
"É incompatível com a Constituição a ideia de um direito ao esquecimento entendido como o poder de obstar a divulgação de fatos verídicos e licitamente obtidos e publicados."
Nunes Marques
"A liberdade de expressão não pode ser limitada. Não vislumbro possibilidade de se extrair da Constituição norma que proíba a veiculação da notícia."
Alexandre de Moraes
"Teríamos controle preventivo das informações a serem divulgadas? Isso claramente configura censura prévia."
Rosa Weber
"No estado democrático de direito, a liberdade de expressão é a regra."
Cármen Lúcia
"Em um país de triste desmemória como o nosso, discutir e julgar o esquecimento como direito fundamental pareceria um desaforo para a minha geração."
Ricardo Lewandowski
"A humanidade, ainda que queira suprimir o passado, a todo momento é obrigada a revivê-lo."
Gilmar Mendes
"É possível compatibilizar direito à privacidade com liberdade de informação mormente ao assegurar que fatos distantes possam ser divulgados desde que presente o interesse público e histórico."
Marco Aurélio Mello
"Não cabe numa situação como essa simplesmente passar a borracha e partir-se para um verdadeiro obscurantismo."
Luiz Fux
"O direito ao esquecimento não pode reescrever o passado nem obstaculizar o acesso à memória, o acesso ao direito de informação ou o acesso à liberdade de imprensa."
A FAVOR
Edson Fachin
"Eventuais juízos de proporcionalidade devem sempre considerar a posição de preferência que a liberdade de expressão possui, mas também devem preservar o núcleo essencial dos direitos da personalidade." Edson Fachin
LUÍS BARROSO DECLAROU SUSPEIÇÃO E NÃO VOTOU