O Globo, n. 32047, 04/05/2021, País, p. 4

 

Uso político da PF

Bela Megale

Natália Portinari 

Geralda  Doca

04/05/2021

 

 

 

Senadores articulam convocação de ministro da Justiça na CPI da Covid

O ministro da Justiça, Anderson Torres, entrou na mira da CPI da Covid. Integrantes do grupo majoritário da Comissão Parlamentar de Inquérito, formado por senadores oposicionistas e independentes, articulam a convocação do ministro após ele afirmar que pediria à Polícia Federal (PF) informações sobre as operações contra desvios de recursos nos estados, e defender que a CPI não se limite à atuação do governo federal. As declarações, dadas em entrevista à revista “Veja”, provocaram também a primeira crise do novo ministro com a PF. Delegados afirmaram que não vão compartilhar dados de investigações com terceiros sem determinação judicial. O temor é que a corporação seja usado politicamente.

A convocação deve aumentar a pressão sobre o governo, que nesta semana terá o atual titular da Saúde, Marcelo Queiroga, e seus três antecessores na gestão Jair Bolsonaro prestando depoimento na CPI. O requerimento para que Torres compareça já foi protocolado pelo senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP), vicepresidente da comissão. O relator, Renan Calheiros (MDB-AL), adiantou ao GLOBO ser favorável.

— Apoio e não acho que ele vai transformar a Polícia Federal em polícia política. A Polícia Federal é uma instituição respeitável, de Estado e que nunca se permitiu ser instrumentalizada — afirmou Renan.

O governo tem como aliados apenas quatro dos 11 titulares da CPI, o que torna difícil barrar pedidos de convocação como este.

O senador Otto Alencar (PSD-BA) também fez críticas a Anderson Torres e disse apoiar a convocação.

— O ministro da Justiça tem que ser neutro, e ele passou a ser parte, a ser advogado de defesa do presidente da República. Nunca pensei que isso pudesse ser feito de forma tão explícita —disse Alencar.

Já Eduardo Braga (AM), membro da comissão e líder do MDB, defende tratar o assunto com cautela. Disse que não gostou das declarações do ministro, mas afirmou que uma convocação precisa ser debatida entre os membros do colegiado.

As declarações polêmicas do ministro foram dadas em entrevista à revista “Veja”, publicada na última sexta-feira. Além de pedir “cuidado” com os rumos da Comissão Parlamentar de Inquérito e revelar o pedido de informações sobre as operações da PF, Torres defendeu o comportamento do presidente Jair Bolsonaro, como a recusa em usar máscara. Torres cobrou ainda que a CPI tenha uma atuação mais ampla e investigue desvios nos estados e prefeituras.

— Esta não é função da CPI. A apuração de desvio de recursos deve ser feita pela Polícia Federal e pelo Ministério Público Federal —disse Renan Calheiros.

O escopo da CPI foi ampliado para investigar o emprego dos recursos federais repassados a estados e municípios. O requerimento foi protocolado pelo senador Eduardo Girão (Podemos -CE).

Nesta semana, o colegiado vai ouvir os ex-ministros da Saúde Luiz Henrique Mandetta, Nelson Teich e Eduardo Pazuello. O atual ministro Marcelo Queiroga e o diretor-geral da Anvisa, Antonio Barra Torres, também prestarão depoimento.

CRISE NA PF

O incômodo com a posição do ministro foi além da CPI e provocou a primeira crise entre Torres, que assumiu há um mês, e a PF. Delegados dizem que não vão compartilhar dados das investigações sem autorização judicial. E temem que o órgão seja usado politicamente na CPI, com o objetivo de municiar o discurso de aliados do governo na comissão.

A avaliação de delegados é que se fizer mesmo esse pedido, Anderson Torres vai extrapolar suas atribuições como ministro e pode colocar em xeque a independência da PF. Para os investigadores, a requisição de dados sobre desvios de verbas destinadas ao combate da Covid-19 envolvendo governos estaduais e municípios precisa ser feita pelos senadores, com a aprovação de requerimento, e não pelo ministro à qual a PF está subordinada. Integrantes da corporação afirmam que, sem base legal, os dados não chegarão às mãos de Torres, ao menos de maneira formal.

O trâmite usual em CPIs é que parlamentares façam esse tipo de pedido. Diante da solicitação, a PF encaminha a demanda à Justiça, que determina se dados sigilosos dos inquéritos podem ser compartilhados. Os policiais federais dizem ainda que, como delegado da PF, Torres sabe que esse é o procedimento a ser seguido e que há potencial de crise se qualquer dado for compartilhado fora do rito.

A PF já deflagrou 77 operações em 23 estados que investigam suspeitas de irregularidades no uso de recursos transferidos pela União para o combate ao novo coronavírus. As investigações apontam desvios de mais de R$ 2,2 bilhões.