Correio Braziliense, n. 21148, 19/04/2021. Brasil, p. 4

 

O risco de flexibilizar medidas antes da hora

Bruna Lima 

Eduarda Cardim

19/04/2021

 

 

Apesar da ligeira queda nos números da covid, o aumento da circulação de pessoas em 20 estados e no DF representa perigo, segundo especialistas. Estagnação ou até reversão de tendência na pandemia são ameaças reais, com UTIs ainda em níveis críticos de ocupação

Sem a realização de um lockdown efetivo e por tempo suficiente para garantir uma queda brusca de novas infecções na maioria das cidades e estados do Brasil, o país pena para ver as notificações diárias da covid-19 diminuírem. Com restrições insuficientes associadas à flexibilização precipitada das atividades, regiões do país que indicavam desaceleração de notificações observam uma estabilização na queda. Análises por monitoramento de dados apontam possíveis reversões de quedas importantes em 21 unidades federativas e temem que o país estacione em um alto patamar de registro diário de casos e mortes. O Brasil marcou, ontem, mais 1.657 mortes e 42.980 infecções pela covid-19. Com isso, o país totaliza 373.335 óbitos e 13.943.071 de casos da doença.

Coordenador da Rede Análise Covid-19, o pesquisador Isaac Schrarstzhaupt alerta que a estabilização, e até mesmo retorno de incrementações em alto patamar, é preocupante porque o país ainda tem muitos casos ativos e os sistemas de saúde continuam com níveis críticos de ocupação. "Deixamos a curva subir a níveis estratosféricos. Fazendo uma analogia com a subida de um foguete, mesmo que usemos todos os recursos para abatê-lo e fazê-lo voltar para a Terra, a aterrissagem vai demorar muito mais desta vez. Quanto mais deixamos a infecção subir, mais paciência precisamos ter para retomar as atividades normais", expõe.

Analisando dados de mobilidade fornecidos pelo Google e pelo Facebook, que mostram o deslocamento de pessoas por meio da localização dos celulares, e correlacionando com outros indicadores como taxa de ocupação de leitos e novos casos, Schrarstzhaupt faz previsões acerca da pandemia. No levantamento mais recente, o pesquisador verificou possível reversão de queda em 21 das 27 unidades federativas; na análise da semana anterior, eram apenas 11 nessa situação.

"Tudo indica que essa queda na média móvel da taxa de crescimento não se sustentará, em razão da mobilidade que aumenta na maioria das regiões brasileiras". Para fazer a análise, Schrarstzhaupt compara a média móvel de taxa de crescimento atual às médias de 30 e 10 dias anteriores. Por fim, calcula a diferença entre as variações. "Se a variação dos últimos 10 dias é mais positiva do que a dos últimos 30 dias, isso indica uma possível mudança pró aumento de casos ou pró desaceleração de queda (reversão de tendência)", explica.

Pesquisadores da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) haviam expressado a preocupação no último boletim extraordinário do Observatório Covid-19, divulgado na semana passada. Segundo o documento, é possível observar uma estabilização na incidência de novos casos, mas a estabilidade é acompanhada da permanência de índices altos de positividade dos testes e pela alta taxa de ocupação de leitos de unidades de terapia intensiva (UTIs) na maioria dos estados.

"Esse padrão pode representar a desaceleração da pandemia, com a formação de um novo patamar, como o ocorrido em meados de 2020, porém com números bem mais elevados de casos graves e óbitos", dizem os pesquisadores. O perigo de estacionar em um alto patamar é que basta uma nova explosão de casos, para ver números exorbitantes.

O aumento de mobilidade visto nos estados e municípios que flexibilizam as restrições em meio a um cenário ainda de caos contribui para que esses números voltem a crescer. "Aumentar a mobilidade em um patamar tão alto transformará a recém-conquistada desaceleração, na melhor das hipóteses, em um platô de muitos óbitos. Como temos muitos casos, é altamente possível, ainda, voltar a subir rapidamente. Por isso, precisamos continuar reduzindo a mobilização", alerta Schrarstzhaupt.

O pesquisador cita, como exemplo, alguns estados que aumentaram a mobilidade de maneira precipitada e, agora, veem uma estabilização perigosa de casos e mortes em alto patamar. O Distrito Federal é um deles. A unidade federativa começou a ter um aumento de casos considerável a partir do início de fevereiro e só no fim do mês foram decretadas restrições. "Houve vários ciclos de contágio que ocorrem mesmo durante o período de isolamento. Mas é possível correlacionar isso a uma dificuldade de decisão, que promoveu fechamentos importantes, mas aberturas quando os hospitais menos tinham capacidade de receber pacientes".

Taxas críticas
Quando o governador do DF, Ibaneis Rocha, anunciou a abertura das atividades não essenciais, os hospitais públicos tinham 97,5% dos leitos de UTIs para pacientes da covid-19 ocupados e a rede privada operava com 99% de lotação. "Vemos que a discussão está relativizada quando uma medida admite abrir (serviços) com 80%, 85% de ocupação e 100 pessoas na fila de espera por UTI. Como assim? Com pessoas precisando de leito, não se pode flexibilizar de maneira alguma", critica Schrarstzhaupt.

Em São Paulo, a abertura dos atividades também ocorreu ainda com a alta de internações hospitalares e pode gerar um cenário perigoso de estabilidade altíssima de casos. "No Sudeste, o mesmo ocorre com Minas Gerais e Espírito Santo. Percebemos estabilização em patamares altos, indicando um futuro complicado, e as mortes mal começaram a cair. No Sul, RS, PR e SC vinham quase conquistando uma queda, mas a velocidade desacelerou e, agora, mostram uma estabilização. Além do Sudeste, o Norte, Nordeste, Centro-Oeste estão todos com casos lá em cima e no início de uma desaceleração na velocidade", detalha o pesquisador, alertando que, quando aparece um indicador de aumento de velocidade de uma doença altamente transmissível, é necessário "correr para frear".

Sem direcionamento
Na visão de especialistas, a ausência da adoção de um lockdown contundente ocorre por falta de um direcionamento único e apoio do governo, que critica a medida. "As respostas locais variaram em forma, intensidade, duração e horários de início e fim, até certo ponto associadas a alinhamentos políticos", diz um estudo publicado na revista científica Science.

Segundo os pesquisadores, a falta de coordenação nacional entre os diferentes níveis de governo é um dos pontos que explicam o fracasso do combate ao vírus no Brasil. Entidades de saúde que compõem o Conselho Nacional de Saúde (CNS) recorreram ao Supremo Tribunal Federal (STF) para que a medida mais restritiva de circulação seja exigida ao governo federal ainda este mês.

Enquanto isso, o chefe do Executivo voltou a criticar a adoção de um lockdown nacional nos últimos dias. "Será que o pessoal não consegue entender que está errado essa política do 'fecha tudo', do lockdown?"