O Globo, n. 32043, 30/04/2021, Sociedade, p. 12

 

Covid já matou 401 mil no país
Renato Grandelle
30/04/2021

 

 

 

A tragédia da Covid-19 no Brasil não é visível apenas na impressionante marca, atingida ontem, de 401.417 óbitos, segundo o consórcio de veículos de imprensa. Em meio à falta de vacinas e sob um governo questionado em CPI por sua ação na pandemia, o peso do novo coronavírus sobre o sistema de saúde também surge em outro indicador — uma em cada cinco mortes notificadas no país (21,7%) desde março do ano passado é decorrente da doença.

O índice foi calculado a partir dedados da Associação Nacional dos Registradores de Pessoas Naturais (Arpen), entidade que representa todos os cartórios do país. A primeira morte provocada pela pandemia, segundo registros oficiais, ocorreu no dia 17 de março do ano passado. Desde aquele mês, o Brasil contabilizou 1.850.466 óbitos totais. A associação assina laque os cartórios são responsáveis pelo fornecimento de dados — e o número, portanto, pode estar defasado —, masa relação de um quinto deve permanecer.

Apesar do percentual elevado, pesquisadores entrevistados pelo GLOBO acreditam que ele pode ser ainda maior: a subnotificação ainda é alta no país, já que muitos infectados pelo coronavírus morrem em casa, sem recorrera atendimento médico, devido ao colapso do sistema hospitalar. Há, também, óbitos por Covid-19 que são registrados como síndrome respiratória aguda grave (SRAG) sem causa determinada.

A escalada da pandemia é comprovada por seguidos recordes batidos nas últimas semanas. Desde achegada do coronavírus ao Brasil, houve 19 ocasiões em que o país registrou mais de 3 mil mortes diárias em decorrência da doença —14 vezes em abril e cinco em março deste ano.

O Brasil é o segundo país em óbitos acumulados, atrás apenas dos EUA (cerca de 575 mil), e também o segundo no registro de novas ocorrências da Covid-19 na última semana, ranking liderado agora pela Índia. A taxa de letalidade mais que dobrou, de 2% no final de 2020, para 4,4% na semana passada.

Antes da Covid-19, nenhuma doença havia provocado mais de 3 mil óbitos por dia no Brasil. As infecções respiratórias, todas juntas, levam 13 dias para matar o mesmo contingente. Já os casos de violência demoram 19 dias para chegar à marca.

RETROCESSO HISTÓRICO

Pedro Hallal, epidemiologista da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), considera que a Covid-19 levou o país a retroceder, ao menos, 50 anos.

— Nas últimas décadas, as principais causas de mortes no país eram doenças não transmissíveis, como infarto, câncer e diabetes. A pandemia mudou esse padrão: o coronavírus indicou um retorno a meados do século XX, quando predominavam as doenças infecciosas — destaca. — Além disso, há estudos que mostram que a Covid-19 já diminuiu a expectativa de vida do brasileiro em quase dois anos.

O epidemiologista considera que 300 mil das 400 mil mortes causadas pela pandemia poderiam ter sido evitadas caso o país enfrentasse a pandemia como outras nações:

— O Brasil tem menos de 3% da população mundial. Então, deveria ter menos de 3% dos óbitos. Mas hoje registra cerca de 13%, aproximadamente quatro vezes mais do que o esperado.

Para o sanitarista Christovam Barcellos, coordenador do Monitora Covid-19 da Fiocruz, a situação da pandemia poderia ser ainda mais grave. Segundo ele, uma investigação do registro de óbitos aponta que a doença já teria matado mais de 500 mil pessoas no país. O diagnóstico caberia às secretarias de Saúde, mas muitas não têm a infraestrutura necessária para o trabalho.

Barcellos destaca ainda as mortes “indiretas” causadas pela pressão que a pandemia colocou sobre as redes hospitalares.

—Há complicações que não puderam ser atendidas, devido a fatores como a exaustão dos profissionais de saúde, a falta de oxigênio e de medicamentos nos hospitais e a superlotação de UTIs —explica.

— Esse quadro contribuiu para óbitos indiretos: quantas pessoas tiveram infarto e não conseguiram ser socorridas? Quantas tiveram cirurgias adiadas eviram sua saúde piorar?

Um boletim divulgado anteontem pela Fiocruz demonstra sinais tímidos de queda no número de casos (-1,5% ao dia) e óbitos (-1,8% diários) por Covid-19 no país. Para Barcellos, seria um indicativo de que o Brasil atingiu o pico da pandemia. No entanto, como a reprodução do coronavírus ainda é acelerada, não há tendência de queda na curva epidemiológica.

— Isso significaria que chegamos a um platô, da mesma forma co mona primeira onda, em meados de 2020. A diferença é que, desta vez, estacionamos em um índice mui tomais elevado. No ano passado, eram cerca de mil óbitos por dia. Agora, atingimos 3 mil — alerta.

— A lição que deveríamos ter aprendido é que este momento deve ser o de reorganização de serviços, e não de flexibilização total.

Outro obstáculo é a circulação de variantes do coronavírus, especialmente a P .1, que emergiu na Amazônia em novembro de 2020. Um estudo divulgado nesta semana pela Secretaria estadual de Saúde de São Paulo indicou que a variante foi detectada em 90% de 1.439 sequenciamentos genéticos analisados pelo Instituto Adolfo Lutz (SP).

A primeira onda do coronavírus demorou meses para atingir o país inteiro, destaca Barcellos. AP.1.cump riu o mesmo trajeto em semanas. Não está comprova doseava r ian teé mais letal, mas, segundo pesquisadores, a velocidade do contágio poderia atrasara erradicação da pandemia.

Eliseu Alves Waldman, epidemiologista e professor da Faculdade de Saúde Pública da USP, ponde raque o país atingido o pi coda segunda ondada pandemia, mas enfrentará um novo desafio nas próximas semanas:

— Entraremos no inverno, quando ocorreu o pico da primeira onda, no fim do mês que vem. Então, pode haver um novo recrudescimento do Sars-CoV-2 nessa época, como ocorre com todos os vírus respiratórios — afirma Waldman.

— Como não tomamos medidas mais radicais para diminuir a circulação do vírus, pode ser que ela seja mantida em um patamar muito alto.

COMBATE ÀS SEQUELAS

Além das mais de 400 mil mortes, Waldman atenta que o país conta com aproximadamente 14,5 milhões de infecções confirmadas. Muitos casos, segundo o epidemiologista, são de pessoas que foram internadas. Embora tenham conseguido sobreviver à Covid-19, podem ter sido vitimadas por outras mazelas.

— O vírus deixa sequelas, principalmente respiratórias, cujas consequências a médio e longo prazos ainda são desconhecidas, masque demandarão atendimento especial. Hoje, a prioridade ainda é evitar o colapso do sistema de saúde— diz Waldman.

— A pandemia também está provocando a diminuição da cobertura de pacientes com outras doenças infecciosas ou crônicas não transmissíveis, que deixaram de ser atendidos. É oca soda tuberculose, que tem uma incidência alta no Brasil, da hipertensão e do diabetes.

Também preocupa a marcha lenta da vacinação no país. Iniciada em janeiro, a campanha de imunização contemplou com uma dose apenas 14,6% da população, o equivalente a 30,8 milhões de pessoas. O Brasil é o quarto país que mais vacinou, mas somente o 22º em doses aplicada sacada cem habitantes, deu malista de 52 nações que reportam cobertura vacinal para Covid-19.

Barcellos e Waldman indicam que a imunização, que começou em grupos prioritários —idosos, profissionais de saúde e populações vulneráveis, como os indígenas — deve provocar um efeito cascata, que reduzirá a pressão nos hospitais sobre casos graves. A redução dos índices de mortalidade por Cov id -19 já foi registrada empessoas acima de 80 anos, e em breve poderá será vista em pessoas de outras faixas etárias. No entanto, devido à demora para comprar vacinas, o país segue longe da imunização em massa.