Valor Econômico, n. 5228, 14/04/2021. Internacional, p. A9

 

EUA suspendem vacina da J&J e investigam tecnologia
Julie Steenhuysen
Kate Kelland
14/04/2021

 

 

 

Com duas vacinas anticovid atualmente sob investigação devido a possíveis ligações com casos muito raros de coágulos sanguíneos no cérebro, os cientistas do governo dos EUA estão avaliando a possibilidade de a tecnologia específica por trás das vacinas estar contribuindo para o risco.

Na Europa, os órgãos reguladores do setor de saúde disseram na semana passada haver uma possível ligação entre a vacina da AstraZeneca e 169 casos de um raro coágulo sanguíneo do cérebro conhecido como trombose do seio venoso cerebral (CVST), acompanhada por uma baixa contagem de plaquetas sanguíneas, dentre 34 milhões de vacinas aplicadas na União Europeia (UE).

A agência de alimentos e medicamentos dos EUA (FDA) recomendou suspender temporariamente o uso da vacina da Johnson & Johnson (J&J) após relatos de 6 casos de CVST em mulheres com menos de 50 anos, dentre cerca de 7 milhões de pessoas que receberam a vacina no país.

Ambas as vacinas são baseadas em uma nova tecnologia que usa adenovírus, causadores do resfriado comum, modificados de modo a ficarem, essencialmente, inofensivos. Os vírus são usados como vetores para transmitir para as células humanas instruções para que fabriquem as proteínas encontradas na superfície do coronavírus, preparando o sistema imunológico a produzir anticorpos que combaterão o vírus real.

Os cientistas buscam identificar o mecanismo potencial que explicaria os coágulos sanguíneos. Uma das principais hipóteses parece ser que as vacinas estejam desencadeando uma reação imunológica rara que poderia estar relacionadas com esses vetores virais, disseram ontem autoridades da FDA.

O órgão americano analisará dados de testes clínicos de várias vacinas que usam esses vetores virais, inclusive a vacina da J&J contra o ebola, na busca de pistas.

Nenhuma das vacinas anteriores que usam vetores virais foram aplicadas em escalas próximas às vacinas anticovid da AstraZeneca e da J&J, o que pode explicar por que um vínculo potencial com coágulos sanguíneos apenas tenha se materializado durante essas vacinações em massa.

A tecnologia também é usada em vacinas anticovid desenvolvidas na China e na Rússia.

Peter Marks, diretor do Centro de Avaliação e Pesquisa Biológica do FDA, relutou em declarar que o problema de coágulo tem um “efeito de classe” compartilhado por todas as vacinas à base de vetores adenovirais, mas ele vê uma acentuada semelhança nos casos.

“Já está claramente óbvio para nós que o que estamos vendo com a vacina Janssen [da J&J] parece muito semelhante ao que estava sendo observado na vacina da AstraZeneca”, disse Marks. “Não podemos fazer nenhuma afirmação ampla ainda, mas, obviamente, elas são da mesma categoria geral de vetores virais.”

Na Europa, cientistas estão prospectando uma série de hipóteses, que incluem um exame mais amplo na maneira como o próprio vírus Sars-CoV-2 afeta a coagulação sanguínea.

Uma equipe na Holanda pretende realizar estudos de laboratório que expõem tipos específicos de células e de tecidos à vacina e monitorar como eles reagem. Também investigarão a possibilidade de limitar alguns riscos reduzindo a dose da vacina.

“Há muitas hipóteses, e algumas delas podem desempenhar um papel”, disse o virologista Eric van Gorp, do Erasmus Medical Centre de Roterdã. “Estamos no começo e - como ocorre no campo da pesquisa - talvez possamos encontrar a pista imediatamente ou talvez isso ocorra passo a passo.”

Outros cientistas ficaram impressionados com o paralelo entre as vacinas da J&J e da AstraZeneca.

Danny Altmann, professor de imunologia do Imperial College London, disse que as ocorrências semelhantes de formação de coágulos sanguíneos associadas a ambas “são, sem dúvida, dignas de nota como mecanismo definidor”. Não houve qualquer sinal da presença desses problemas com as vacinas produzidas pela BioNTech com a Pfizer ou pela Moderna, que usam tecnologia diferente.

“Seria interessante saber mais sobre a Sputnik V - também uma vacina de adenovírus semelhante”, disse Altmann. A vacina russa desenvolvida pelo Instituto Gamaleya de Moscou usa dois diferentes vírus do resfriado humano - incluindo o Ad26, usado na vacina da J&J.

A questão poderá afetar também a vacina à base de vetores adenovirais da chinesa CanSino Biological, dizem especialistas.

Examinar se há alguma ligação comum com os adenovírus é uma “especulação cabível, e trata-se de uma linha de pesquisa e de investigação. Mas isso não significa que está comprovado”, disse John Moore, professor de microbiologia e imunologia do Weill Cornell Medical College de Nova York.

Moore, que participou ontem de uma conversa informal da Casa Branca com outros cientistas, disse que a FDA e o Centros de Controle e Prevenção de Doenças dos EUA (CDC) estão trabalhando em colaboração com autoridades europeias para descobrir se as síndromes vinculadas às vacinas da AstraZeneca e da J&J são as mesmas.

Uma pista importante pode estar no fato de que as ocorrências notificadas normalmente aparecem cerca de 13 dias após a aplicação da vacina, que é o período em que se pode esperar o surgimento de anticorpos. “Isso é especulação, mas o momento em que alguma coisa ocorre, após cerca de 13 dias, em média, sugere uma resposta imunológica a um componente da vacina”, disse Moore.