Valor Econômico, n. 5224, 08/04/2021, Política

 

“Cristãos estão dispostos a morrer para garantir liberdade de culto”, diz Mendonça
Luísa Martins
08/04/2021

 

 

 

Com um tema religioso em discussão no Supremo Tribunal Federal (STF), o advogado-geral da União, André Mendonça, e o procurador-geral da República, Augusto Aras, aproveitaram para demonstrar ao Palácio do Planalto que podem ser o nome “terrivelmente evangélico” que o presidente Jair Bolsonaro procura para a próxima vaga na Corte, que abre em julho.

O plenário do tribunal começou a discutir a constitucionalidade de decretos estaduais e municipais que determinaram o fechamento de templos e igrejas para atividades religiosas coletivas durante a pandemia, com o objetivo de evitar a disseminação do coronavírus e um colapso ainda mais grave no sistema de saúde. O julgamento continua hoje.

Em sua sustentação oral, Mendonça, que é pastor presbiteriano, fez um discurso de forte apelo religioso. Para defender a realização de missas e cultos durante a crise sanitária, citou versículos da Bíblia, disse que “não há cristianismo sem vida comunitária” e encerrou sua fala com um “que Deus tenha piedade de nós”.

“Não estamos tratando de um debate entre a vida e a morte, mas da perspectiva em que todo cristão se presume defensor incondicional da vida, reconhece os perigos dessa doença terrível e sabe que precisa tomar cuidados diante dessa enfermidade.”

De argumentos jurídicos, Mendonça disse apenas ser preciso garantir os princípios da liberdade religiosa e da proporcionalidade. Afirmou, também, que a proibição dos cultos configura “discriminação”, vedada pela Constituição.

“Verdadeiros cristãos jamais estão dispostos a matar por sua fé, mas estão sempre dispostos a morrer para garantir a liberdade de religião e culto”, disse o ex-ministro da Justiça, em sua primeira fala no Supremo depois de reassumir o comando da AGU.

Em seguida, Aras foi na mesma linha, argumentando que a fé e a ciência salvam vidas na mesma medida e que a liberdade religiosa é um direito fundamental que não pode ser suprimido.

“O Estado é laico, mas as pessoas não são. Fé e razão, em lados opostos nestes autos, caminham lado a lado em defesa da vida e da dignidade humana, compreendida em suas múltiplas dimensões, abrangendo a saúde física, mental e espiritual”, disse.

De acordo com Aras, decretos estaduais e municipais que determinam o fechamento de templos e igrejas não têm força para derrubar princípio previsto em cláusula pétrea da Constituição. “Onde a ciência não explica, a fé traz justificativas.”

Único a votar no julgamento, o relator do caso, ministro Gilmar Mendes, iniciou sua manifestação rebatendo o AGU: “Eu poderia ter entendido que Vossa Excelência teria vindo de uma viagem a Marte, mas verifiquei que era Ministro da Justiça, com responsabilidades institucionais.”

Posicionando-se a favor da interrupção de atividades coletivas religiosas durante a pandemia, Gilmar prosseguiu com as críticas ao governo. Disse que o país se tornou um “pária internacional” no âmbito da saúde e que, não fosse a decisão do STF de garantir autonomia também aos Estados e municípios, a situação estaria ainda pior.

“Migra para o domínio do surreal a narrativa de que a interdição temporária de eventos religiosos teria algum motivo anticristão. Ainda que uma vocação íntima possa levar à escolha individual de entregar a vida pela religião, esta é uma forma sutil de erodir a normatividade constitucional, tomando o nome de Deus para sustentar o direito à morte.”

Hoje, o reinício do julgamento será com o voto do ministro Nunes Marques - no sábado, ele concedeu liminar em sentido contrário, liberando as cerimônias coletivas na Semana Santa.

Ontem, Bolsonaro defendeu a decisão de Marques. “Mais de 90% da população acredita em Deus. Espero que o STF mantenha a liminar ou que alguém peça vista”, disse, durante visita a Chapecó, em Santa Catarina. (Colaboraram Isadora Peron e Matheus Schuch)