O Globo, n. 32039, 26/04/2021, Mundo, p. 23

 

Imbróglio italiano 
Lucas Ferraz
26/04/2021

 

 

 

A Itália foi o primeiro país da Europa a baixar um decreto que obriga a vacinação contra a Covid-19 de médicos, enfermeiras e demais profissionais da saúde que tenham contato direto com pacientes em hospitais, clínicas, casas de repouso e farmácias. Se recusarem, eles podem ser removidos de seus postos e perder até o salário. A medida, que entrou em vigor em 1º de abril e deverá ser votada pelos parlamentares italianos até o início de junho para então virar lei (ou ser derrubada), detonou uma polêmica que provavelmente terminará nos tribunais: pode o Estado impor vacina a uma categoria e estabelecer sanções para quem se recusar a ser imunizado?

Desde que começou a campanha de vacinação na Europa, em dezembro, o governo italiano —à época comandado pelo primeiro ministro Giuseppe Conte, que caiu em fevereiro — se manifestou no sentido de que não haveria obrigatoriedade da vacina, mas sim uma campanha de conscientização de seu uso.

MOVIMENTO ‘NO-VAX’

Com a chegada de Mario Draghi, ex-presidente do Banco Central Europeu que foi nomeado premier há dois meses, o governo mudou de ideia e decidiu editar a medida que obriga a vacinação dos operadores de saúde. O objetivo, conforme anunciado na apresentação do decreto pelo premier e seu ministro da Saúde, Roberto Speranza, que está no cargo desde o início da pandemia, é tutelar a saúde dos pacientes e evitar a propagação da doença nos hospitais.

Com a norma, o governo central acabou se antecipando a uma decisão que era estudada por regiões como a Ligúria, no Norte da Itália, que registrou um surto de coronavírus entre médicos e enfermeiros que ainda não tinham sido vacinados.

Uma parte minoritária dos operadores de saúde, estimada em5%,écont rá riaàmed ida e já saiu duas vezes às ruas neste mês para protestar. Entre os médicos que atuam nos hospitais da Itália, estima dosem 114 mil, cerca de 2.200 se recusaram até agora ase vacinar, segundo a própria categoria.

—O que precisamos avaliar éa compatibilidade e a proporcionalidade das sanções em relação à utilidade da vacinação — afirmou o advogado Stefano Bartone, cujo escritório em Turim está avaliando a possibilidade de abrir um processo para defender enfermeiros que rejeitam a imunização.

Ele diz já ter se reunido com mais de uma dezena de profissionais que não querem a vacina contra a Covid-19.

O decreto prevê a suspensão do trabalho até dezembro deste ano e o corte do salário, para servidores do Estado e também da iniciativa privada. O problema, diz o advogado, é o peso das sanções:

— Trata-se de uma decisão extrema, urgente e provisória tomada pelo governo, e não pelo Parlamento, que deveria ter a atribuição de decidir sobre isso —acrescenta.

Na última quarta-feira, cerca de 200 pessoas de diferentes regiões italianas se reuniram em Roma na entrada do Palácio Montecitorio, sede da Câmara dos Deputados, para protestar pelo direito à “liberdade de escolha” —slogan dos mais moderados. Os radicais veem a decisão como mais uma “arbitrariedade” do que chamam de “ditadura sanitária”, termo consagrado pela extrema direita em vários países.

Na Itália, que conta comum movimento antivacina estridente e considerado um dos maiores da Europa, o decreto serviu como mais um estímulo para engrossar uma campanha já presente nas redes sociais eque, pouco apouco, começa a ganharas ruas.

Nas últimas semanas, atos em várias cidades misturaram comerciantes em dificuldade, manifestantes “no-vax” e grupos neofascistas.

— É fácil colocar todos juntos no mesmo pacote, mas não é assim. Eu defendo a vacina, não sou contrária. Minhac rí ticaéquantoà obrigação de ser vacinada e das penas impostas a quem não o fizer —comentou Francesca, enfermeira presente na manifestação e que trabalha num hospital romano que atende crianças com deficiência mental.

D ario, um podólogo que trabalha num hospital de Florença eque viajou duas horas para participar do ato em Roma, disse que “o Estado não é dono do meu corpo, isso não é algo que pode ser imposto”.

Em janeiro deste ano, o Parlamento Europeu aprovou uma resolução dizendo que a vacina contra a Covid-19 não pode ser obrigatória eque nenhum apessoa deve ser discriminada por não ser imunizada. As resoluções não são juridicamente vinculantes para os países da União Europeia, embora tenham influência política.Esseé um dosaspect oscitados pelos operadores de saúde cont rá riosàmed ida. Ooutroé um artigo da Constituição italiana que diz: “Ninguém pode ser obrigado a um determinadotratamento sanitário, senão por disposição de lei. Alei não pode em nenhum caso violar os limites impostos ao respeito da pessoa humana.”

O decreto regulamentaria essa questão. A legislação italiana prevê desde os anos 1960 a obrigação de vacinas contra a poliomielite e veta a inscrição em escolas públicas de crianças que não tenham tomado as doses obrigatórias. O advogado Bartone argumenta que a vacina contra a Covid-19 não impede a transmissão do vírus (e, sim, reduz drasticamente a possibilidade de internações ou mortes).

CATEGORIA MAIS VACINADA

Até o momento, das mais de 19 milhões de doses aplicadas na Itália, em cerca de 20% da população, 3 milhões (15% do total) foram destinadas para o pessoal de saúde. Prioridade da fase inicial da campanha, trata-se da segunda categoria mais vacinada no país, atrás apenas da população idosa com mais de 80 anos.

Após o anúncio do decreto e das sanções previstas, houve uma corrida de médicos e enfermeiros para receberem as vacinas. O Ministério da Saúde está fazendo um levantamento para estabelecer o número de profissionais que ainda recusam as doses.

A Europa de forma geral sempre teve um grande índice de resistência às vacinas. Essa desconfianças e verificou também coma imunização contra a Covid-19. Pesquisa realizada pela revista Nature Medicine em 19 países revelou que os índices de confiança mais baixos com essa vacina foram registrados entre os europeus: 68% dos alemães a consideravam segura e eficaz, chegando a 59% na França e 56% na Polônia. Na China, o índice chegou a 89%, enquanto no sEU Abateu a casados 75%.