O Globo, n. 32039, 26/04/2021, País, p. 4

 

Na defensiva
Dimitrius Dantas
Leandro Prazeres
26/04/2021

 

 

Um documento enviado pela Casa Civil da Presidência da República a 13 ministérios faz uma lista de 23 “acusações” esperadas pelo governo na CPI da Covid e pede subsídios para fazer frente aos questionamentos por meio de relatórios das ações tomadas no combate à pandemia. Como mostrou O GLOBO na edição ontem, o Palácio do Planalto montou uma “operação de guerra” para enfrentar as investigações.

A busca de informações dos ministérios foi decidida em uma reunião na segunda-feira passada. O documento foi revelado pelo portal UOL e obtido pelo GLOBO. Enviado por e-mail na quarta-feira, ele faz uma divisão entres as pastas sobre as responsabilidades de levantar informações para responder às questões colocadas.

Alista tem temas específicos sobre a atuação do presidente Jair Bolsonaro, como a “acusação” de ele ter feito pressão sobre os ex-ministros da Saúde Luiz Henrique Mandetta e Nelson Teich para aprovarem ou soda hidroxicloroquina.

Parte dos pontos levantados, porém, tem como base um relatório do Tribunal de Contas da União (TCU) sobre a gestão do Ministério da Saúde na pandemia e uma investigação do Ministério Público Federal d oAmazona s(MPF-AM), que já resultou em ação de improbidade contra o ex-ministro Eduardo Pazuel loe outrasda pasta e da secretaria estadual de Saúde.

O documento enviado aos ministérios é uma demonstração da preocupação do governo diante da CPI. Um comitê de crise já foi montado no governo deseja produz irum arsenal para a defesa do ex-ministro Pazuello e também para blindar Bolsonaro.

A ideia é que o ex-ministro da Saúde, que deve assumir um cargo no Planalto, dedique o seu tempo ase debruçar sobre uma série de documentos, dados e informações oficiais que reforcem a narrativa de que o governo não foi omisso na pandemia nem na crise de falta de oxigênio em Manausemjaneiro. Também estará a sua disposição um grupo de trabalho formado por integrantes de diferentes ministérios — que fornecerá subsídios para defender as ações do governo.

O plano envolve até a tentativa de interlocução com pessoas próximas ao senador Renan Calheiros (MDBAL), indicado como relator da comissão. Nos últimos dias, o governo procurou uma aproximação com o ex-presidente José Sarney, que conversa semanalmente com Renan. O presidente Bolsonaro também ligou para Renan Filho, governador de Alagoas e primogênito do senador.

Para integrantes da CPI no Senado, a operação montada no Palácio do Planalto já era esperada e o objetivo será tentar desviar os assuntos para as acusações de corrupção nos estados e municípios.

— O objetivo vai ser fazer com que ela não avance, mas os fatos são evidentes, gritantes — afirmou Humberto Costa (PT-PE).

Responsável por propor a CPI, Randolfe Rodrigues (Rede-AP) também minimizou a estratégia:

— O único confronto que estamos preocupados na CPI e contra a pandemia e o vírus. Se o presidente e seu governo têm a consciência que estão fazendo a coisa certa não precisam temer.

A tentativa de conter ou se aproximar de Renan também é vista com desconfiança. Apesar da procura por Sarneyealig açã opara Renan Filho, pes soas próximas ao senador afirmaram que a possibilidade de o ex-presidente se envolver no assunto em defesa de Bolsonaro é pequena.

Além disso, apolítica de Alagoas pesan apostura de Renan e dificulta qualquer tentativa de aproximação como principais adversários de Calheiros no estado estão mais próximos de Bolsonaro: o presidente da Câmara, Arthur Lira( PP ), e o senador Fernando Collor( PROS ).

O QUE O GOVERNO ESPERA ENFRENTAR NA COMISSÃO

1 - Governo foi negligente com processo de aquisição e desacreditou eficácia da Coronavac

Bolsonaro deu várias declarações contra a vacina desenvolvida pelo Instituto Butantan e pelo laboratório chinês Sinovac. Em 21 de outubro, por exemplo, após o então ministro da Saúde Eduardo Pazuello ter assinado um protocolo de intenção de compras da vacina, o presidente deu uma entrevista dizendo que o governo não compraria o produto por decisão sua: — A da China nós não compraremos. É decisão minha. Eu não acredito que ela transmita segurança suficiente para a população.

2 - Governo minimizou a gravidade da pandemia

Em pronunciamento em rede nacional de rádio e TV em 24 de março de 2020, Bolsonaro comparou a Covid-19 a uma “gripezinha”. — No meu caso particular, pelo meu histórico de atleta, caso fosse contaminado com o vírus, não precisaria me preocupar. Nada sentiria ou seria, quando muito, acometido de uma gripezinha ou resfriadinho, como disse aquele famoso médico daquela famosa televisão.

3 - Governo não incentivou a adoção de medidas restritivas

Em março deste ano, Bolsonaro, por meio da Advocacia Geral da União (AGU), moveu uma ação no Supremo Tribunal Federal (STF) contra medidas de isolamento social adotadas por estados como Rio Grande do Sul, Bahia e pelo Distrito Federal, que decretaram um toque de recolher noturno.

4 - Governo promoveu tratamento precoce sem evidências científicas comprovadas

No início de janeiro deste ano, uma equipe do Ministério da Saúde visitou unidades de saúde no Amazonas para “difundir” o tratamento precoce no Estado. Documentos colhidos pelo MPF também mostram que em meio à crise no sistema de saúde local, o governo enviou 120 mil comprimidos de cloroquina ao Amazonas.

5 – Governo retardou e negligenciou o enfrentamento à crise no Amazonas

Documentos e depoimentos colhidos pelo MPF mostram que o governo foi informado da gravidade da crise em 28 de dezembro, mas só enviou uma equipe para avaliar a situação in loco em 3 de janeiro. Outro documento mostra que, em 12 de janeiro, o governo já sabia que precisaria evacuar pacientes com Covid-19 do Amazonas, mas decidiu esperar a situação ficar “crítica” para iniciar as transferências.

6- Governo não promoveu campanhas de prevenção à Covid-19

Relatório de avaliação da resposta do governo à epidemia feito pelo TCU diz que a campanha de comunicação do Ministério da Saúde “não pareceu adequada para situações de crise, principalmente, considerando a gravidade atual da pandemia, que necessita de agilidade nas intervenções”.

7 – Governo não coordenou o enfrentamento à pandemia em âmbito nacionalmente

Em audiência pública no Senado, o presidente do Conselho Nacional de Secretários (Conass), Carlos Lula, disse que não houve coordenação nacional em relação à epidemia. — Não conseguimos unir os esforços da União aos de estados e municípios para ter uma condução unificada e coerente das medidas que precisavam ser implementadas — disse.

8 – O governo entregou a gestão do Ministério da Saúde, durante a crise, a gestores não especializados (militarização)

Desde maio de 2020, militares passaram a ocupar o comando dos principais postos do ministério. Além de Pazuello, pelo menos outros 20 militares tiveram postos de comando na pasta,. A maior parte deles não tinha qualquer especialização na gestão da saúde pública.

9 – Governo demorou apagar auxílio emergencial

Apesar do recrudescimento da epidemia a partir de janeiro deste ano, o governo só iniciou o pagamento da segunda rodada do auxílio emergencial em abril.

10 – Ineficácia do Pronampe

O programa colocou à disposição R$ 30 bilhões para, entre outras coisas, diminuir o número de demissões durante a epidemia. Mesmo assim, em março deste ano o Brasil registrou uma taxa de desemprego de 14,2%, batendo um recorde de 14,3 milhões de pessoas sem emprego. Muitos empresários não conseguiram receber recursos por essa linha de crédito.

11 – Governo politizou a pandemia

Ao longo da epidemia, Bolsonaro tem atacado governadores que se posicionam contra ele e a favor de medidas de isolamento social. O alvo mais frequente é o governador de São Paulo, João Doria (PSDB). Em março de 2020, durante reunião, os dois trocaram ofensas, e Bolsonaro disse que o governador paulista fazia “demagogia barata”.

12 – Governo falhou na implementação da testagem (deixou vencer testes)

Relatório do TCU criticou o Ministério da Saúde afirmando que o governo federal não tinha uma política clara de testagem em massa contra a Covid-19. “Foi possível concluir que a distribuição dos testes aos Estados, Municípios e DF não obedece a nenhum critério ou tampouco está vinculada a qualquer estratégia, sendo realizada de acordo com a demanda”, diz o relatório.

13 - Falta de insumos diversos (kit intubação)

Secretarias municipais de Saúde de diversas regiões do país vêm apontando que os estoques públicos de medicamentos para intubação estão em níveis críticos e podem acabar. A escassez também atinge hospitais privados. Organizações como o Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass) e Conselho Nacional de Saúde criticam a desorganização e falta de planejamento do governo na compra e produção nacional dos insumos.

14 - Atraso no repasse de recursos para os Estados destinados à habilitação de leitos de UTI

No início do ano, Maranhão, São Paulo, Bahia, Piauí e Rio Grande do Sul foram ao STF contra o governo para a retomada do custeio de leitos de UTI. Somente após decisões do tribunal o Ministério da Saúde autorizou o pagamento.

15 - Genocídio de indígenas

Representantes de entidades indígenas e especialistas denunciam que há um “genocídio” de distritos indígenas em curso devido à pandemia. Essa parcela da população é considerada mais vulnerável por suas condições sociais, econômicas e de saúde. Em março, o país ultrapassou a marca de mil indígenas mortos.

16 - O governo atrasou a instalação do Comitê de Combate à Covid

O comitê de combate à Covid só foi criado um ano depois do início da pandemia. O grupo é formado pelos chefes dos três Poderes da República e se reuniu pela primeira vez no dia 24 de março.

17 - O Governo não foi transparente e nem elaborou um Plano de Comunicação de enfrentamento à Covid

O Ministério Público Federal ajuizou uma ação na Justiça Federal do RS para obrigar o governo a apresentar um Plano Nacional de Comunicação para enfrentamento da Covid-19. O plano deve, entre outras medidas, contemplar a divulgação diária de informações sobre a situação de risco referente a pandemia e as correspondentes orientações de saúde para o público em geral.

18 - O governo não cumpriu as auditorias do TCU durante a pandemia

O governo Bolsonaro não seguiu recomendações do TCU. Segundo o G1, o tribunal recomendou em maio de 2020 que o governo “expedisse orientações” para a utilização de recursos federais transferidos a estados e municípios para o combate à pandemia, o que nunca foi feito.

19 - Brasil se tornou o epicentro da pandemia e ‘covidário’ de novas cepas pela inação do governo

Em março, o país ultrapassou pela primeira vez dois mil óbitos diários por Covid-19 e, este mês, atingiu a marca de quatro mil mortes diárias. O agravamento da pandemia fez o país liderar o ranking de mortes por dia no mundo. Vários países proibiram a entrada de brasileiros em seu território.

20 - Gen. Pazuello, Gen. Braga Netto e diversos militares não apresentaram diretrizes para o combate à Covid

Uma auditoria do Tribunal de Contas da União concluiu em dezembro que o Ministério da Saúde não tem plano estratégico para o enfrentamento da pandemia. Na época, a pasta era comandada por Eduardo Pazuello, enquanto Braga Netto, hoje na Defesa, era ministro da Casa Civil.

21 - O presidente Bolsonaro pressionou Mandetta e Teich para obrigá-los a defender o uso da hidroxicloroquina

Enquanto Bolsonaro fazia recomendações públicas do uso da cloroquina, tanto Mandetta quanto Teich não recomendaram o uso do medicamento e destacaram em entrevistas que a ciência não havia confirmado que a cloroquina funcionava no tratamento do coronavírus. Ambos foram demitidos.

22 - O governo recusou 70 milhões de doses da vacina da Pfizer

A Pfizer ofereceu, em agosto de 2020, ao governo brasileiro 70 milhões de doses de vacina com primeira entrega prevista para dezembro. A empresa afirmou que o governo Bolsonaro não aceitou termos do acordo, aplicados em outros países, e recusou a oferta.

23 - O governo federal fabricou e disseminou fake news sobre a pandemia por intermédio de seu gabinete do ódio

O presidente e integrantes do governo divulgaram mensagens falsas sobre o uso de remédios sem eficácia e fizeram ataques a governadores e prefeitos que adotaram medidas de isolamento. As mensagens foram compartilhadas por apoiadores. O chamado “gabinete do ódio”, formado por assessores do Planalto, é alvo de investigação no inquérito das fake news aberto pelo STF.