O Estado de São Paulo, n. 46486, 25/01/2021. Metrópole, p. A16

 

Com nº limitado de doses, trabalhadores da saúde e prefeitos disputam vacina

Gonçalo Junior

Liege Albuquerque

Vinícius Lima

25/01/2021

 

 

Órgãos de controle e cidades questionam os critérios de rateio da Coronavac; Amazonas teve suspensão da campanha por dois dias em Manaus, devolução de parte do lote enviado ao interior e denúncias de fura-fila. Em hospitais e postos, quem está na linha de frente reclama

Após a euforia do começo da imunização, o número limitado de doses de vacina contra a covid-19 distribuídas pelo Brasil cria conflitos. Cidades, muitas delas vizinhas, reclamam da quantidade recebida. De outro lado, profissionais de saúde e hospitais disputam remessas e trocam acusações de favorecimento. Os órgãos de controle também questionam critérios de rateio e investigam os fura-fila – as denúncias envolvem secretários e até prefeitos.

O Ministério da Saúde estima que o 1.º lote de 6 milhões de doses da Coronavac é suficiente para as duas aplicações em 2,8 milhões de pessoas – 4% dos 68,8 milhões dos grupos prioritários do Plano Nacional de Imunização (PNI). Agora, o público-alvo são profissionais de saúde, idosos em residenciais de longa permanência e indígenas. Com doses limitadas, em muitos casos a conta não fecha.

O conflito mais notório foi no Amazonas. Promotoria e Tribunal de Contas questionaram divergências de dados da divisão entre municípios e cobraram a lista de vacinados. Manaus, que viu hospitais colapsarem há onze dias, até suspendeu a vacinação de quinta-feira a anteontem após denúncias de desvios e fura-fila – é investigado se secretários municipais estão entre os imunizados.

A prefeitura de Manaus não comenta a lista, mas promete um comitê de ética para apurar casos e impor sanções. A Justiça mandou vetar a 2.ª dose para quem tomou indevidamente e determinou a divulgação diária da lista de vacinados.

Tabatinga – na fronteira com Peru e Colômbia – teve de devolver 3.657 doses após o governo estadual refazer contas. Já Parintins, Coari, Autazes e Novo Airão alegam ter recebido menos que o anunciado pelo Estado, que não explicou as divergências. Segundo o governo, de 58 cidades abastecidas, 33 receberam só para a 1.ª dose, por questões de armazenamento, e só Tabatinga recebeu a mais.

No sul da Bahia, as cidades de Banzaê e Euclides da Cunha receberam 1.712 e 1,1 mil doses, respectivamente. As vizinhas Ribeira do Pombal e Itapicuru levaram 343 e 130. Todas têm cerca de 50 mil moradores.

Fábio Villas Boas, secretário de Saúde da Bahia, admite receber queixas. "Muitos não sabem os critérios. Às vezes, as cidades têm o mesmo número de habitantes, mas uma tem índios ou hospitais." Do total de Banzaê e Euclides, por exemplo, 80% são para indígenas.

São José da Lapa, na Grande Belo Horizonte, também contesta. São 372 profissionais de saúde e 87 idosos em instituições de longa permanência. A cidade recebeu 97 doses, mas esperava 670. O prefeito Diego Silva (Avante) diz ter calculado prioritários na população de 25 mil. "Não encontramos lógica no total de vacinas enviadas para alguns municípios e no número menor para outros."

Em nota, a Secretaria de Saúde de Minas informa que o rateio foi conforme "dados alimentados pelos gestores municipais" em sistemas federais e afirma ter reserva para suprir possíveis divergências.

Presidente do Conselho de Secretários de Saúde e titular do Maranhão, Carlos Lula também vê insistência de prefeitos. "Ligam, mandam e-mail, mensagem de Whatsapp e até sinal de fumaça. Perdemos um bom tempo para conversar e acalmá-los. A pressão vai ser até conseguirmos imunizar todos", diz ele, sem citar os insatisfeitos.

Nos próximos dias, devem ser distribuídas mais 4,1 milhões de doses da Coronavac, além de dois milhões da vacina de Oxford, trazidas da Índia.

Na ponta. A vacina também opõe colegas da saúde. Com o 1.º lote, só há o suficiente para imunizar 34% dos trabalhadores da área. A orientação é priorizar os da linha de frente contra a covid-19, mas há denúncias de desrespeito aos critérios ou assimetrias entre unidades de saúde da mesma região.

Como o Estadão revelou, a Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo reclamou que profissionais do Hospital das Clínicas foram mais vacinados que equipes da linha de frente das redes paulistana e privada. O Estado disse que a estratégia leva em conta a limitação de doses e que os imunizados no HC têm contato com infectados. O Ministério Público pediu esclarecimentos sobre o caso.

O Sindicato dos Médicos de São Paulo defende incluir todos os profissionais de saúde que lidam com o público. "Com o aumento dos casos, não existe paciente pouco suspeito de ter o vírus. Quem tem 30 ou 40 pacientes por dia é um profissional com grande risco de contaminação", diz Augusto Ribeiro, diretor da entidade.

Em Manaus, a Justiça obrigou a prefeitura a informar por que o Pronto Socorro 28 de Agosto, referência em atendimento à covid, diz ter recebido só 623 doses, de 3 mil pedidas. Na planilha enviada pelo município à juíza, consta total de 1.411. A gestão não disse ao Estadão o motivo da discrepância.

Enfermeira do 28 de Agosto, Jacqueline Mello já foi imunizada e defende incluir equipes de limpeza, maqueiros e porteiros na lista para receber doses. "Todos correm risco, entram em contato com pacientes."

Mário Vianna, do Sindicato dos Médicos amazonense, diz haver denúncias de prioridade ao "staff dos hospitais em detrimento de quem é da linha de frente. O Ministério da Saúde enviou ofício semana passada a secretários estaduais e municipais, em que defende o cumprimento das diretrizes nacionais.

Em Porto Alegre, trabalhadores da saúde do Pronto Atendimento Cruzeiro do Sul até restringiram o atendimento na quinta-feira, em protesto pelo adiamento da vacinação das equipes, que seria naquele dia e foi remanejado para hoje. A prefeitura da capital gaúcha diz que a imunização hoje segue o cronograma original.

Corrida contra o tempo

6 milhões

de doses do primeiro lote da Coronavac imunizam 2,8 milhões de pessoas – são necessárias duas aplicações. O número equivale a 4% dos 68,8 milhões de brasileiros que formam os grupos prioritários.