O Globo, n. 32035, 22/04/2021, País, p. 4

 

Munição para a CPI
Leandro Prazeres
Paula Ferreira
22/04/2021

 

 

 

O Palácio do Planalto monitora com preocupação investigações em diferentes órgãos sobre a gestão do presidente Jair Bolsonaro no combate à pandemia. A expectativa do governo é que esses procedimentos sejam usados como munição por parlamentares oposicionistas na CPI da Covid já no início dos trabalhos.

A compra e o incentivo ao uso de medicamentos sem eficácia e a lentidão na resposta ao agravamento da crise em Manaus —houve mortes por falta de oxigênio — são alguns dos pontos vistos com apreensão por integrantes do primeiro escalão.

Na primeira leva de documentos requisitados pela CPI devem estar o relatório do Tribunal de Contas da União (TCU) sobre a atuação do Ministério da Saúde na pandemia; as investigações abertas pelo Ministério Público Federal (MPF) contra gestores da pasta, entre eles o ex-ministro Eduardo Pazuello; e um boletim da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP) que aponta o negacionismo do governo federal como um entrave na luta do país contra o novo coronavírus.

A análise técnica feita pelo T CU afirma que o governo não se preparou para uma segunda ondada pandemia em 2021. O relatório destaca que o orçamento da pasta para enfrentar a crise sanitária este ano, na proposta original do governo, era de apenas R$ 20 bilhões, sendo quase integralmente destinado à compra de vacinas. “O governo não se preparou para uma possibilidade de piora da pandemia, no início de 2021, mesmo diante das experiências de outros países”, diz trecho do relatório.

O documento aponta ainda lentidão do governo na compra de testes para Covid-19 e a falta de uma política de testagem. Há críticas à forma como foi feita a distribuição dos testes adquiridos, sob demanda dos entes federados, sem uma estratégia nacional para a aplicação que permitisse identificar ondas da doença em determinadas regiões.

“ABUSO DE PODER”

O documento diz ainda que o Ministério da Saúde foi omisso e não assumiu suas responsabilidade sem atividades como o monitoramento do consumo de medicamentos e insumos estratégicos no combate à pandemia. O relatório diz que esse tipo de omissão configura “abuso de poder” e destaca que foram feitas seguidas alterações no Plano de Contingência para reduzir atribuições da pasta.

Os técnicos também descobriram que, apesar de o país ter vivido escassez de medicamentos do chamado “kit intubação” em meados de 2020, o Ministério da Saúde continuava sem ter um mecanismo próprio de monitoramento sobre o consumo dos medicamentos. Nas últimas semanas, diversos estados relataram a falta de itens usados para anestesiar pacientes que precisam ser intubados. Também se constatou que a distribuição desses medicamentos era feita de forma “linear”, sem considerar as peculiaridades dos estados.

SEM A ‘URGÊNCIA NECESSÁRIA’

As investigações abertas pelo MPF também apontam falhas. Na mais avançada delas, no Amazonas, o ex-ministro Pazuello e outras cinco autoridades da pasta e da secretaria estadual de Saúde são alvo de um processo de improbidade. Como o GLOBO mostrou, documentos incluídos na ação indicam a omissão e a lentidão do ministério em lidar com o colapso no sistema de Saúde do Amazonas, em janeiro deste ano. Atas e depoimentos colhidos mostram, por exemplo, que Pazuello tinha conhecimento da situação crítica no estado desde dezembro de 2020, mas uma comitiva só foi enviada em janeiro.

“Extrai-se mais do que a ciência concreta da cúpula do Ministério da Saúde quanto à situação de iminente colapso que vivia Manaus. Vê-se também que, a despeito da emergência posta, o então Ministro da Saúde não adotou medidas com a urgência necessária ao enfrentamento da pandemia”, diz a ação do MPF.

Outro eixo percorrido pelos procuradores é o incentivo ao “tratamento precoce” por parte do ministro e seus subordinados, fazendo pressão para adoção de medicamentos sem eficácia comprovada. Um ofício enviado pela secretária de Gestão do Trabalho e da Educação da Saúde do ministério, Mayra Pinheiro, à secretaria municipal de saúde de Manaus diz haver “comprovação científica sobre o papel das medicações antivirais orientadas pelo Ministério da Saúde”. Os medicamento indicados, como a cloroquina, porém, são comprovadamente ineficazes contra a doença.

O estímulo ao “tratamento precoce” é alvo de investigação também do MPF do Distrito Federal. Um dos eixos de apuração é da ferramenta trateCOV. O sistema, disponibilizado pelo Ministério da Saúde como aplicativo para celular ou para acesso por um site, indicava tratamentos com base em sintomas descritos na plataforma, recomendando sempre a cloroquina, em testes feitos por veículos de imprensa.

Em outra frente, o documento produzido pela USP faz uma análise acadêmica sobre como as ações do governo federal seriam responsáveis pelo caos sanitário no país. Entre os pontos levantados está o fato de o país ter recusado ofertas de vacinas no ano passado.p