O Globo, n. 32021, 08/04/2021, Sociedade, p. 12

 

Especialistas veem falhas em PL sobre compra privada de doses
Bruno Goés
Constança Tatsch
08/04/2021

 

 

 

A Câmara dos Deputados concluiu ontem a aprovação do projeto de lei que facilita a compra de vacinas contra a Covid-19 por empresas privadas, reduzindo a obrigação de repasse de doses ao Sistema Único de Saúde (SUS). Agora, o texto segue para o Senado. Especialistas veem falhas no texto e enxergam a proposta como um retrocesso em relação às regras anteriores. E, dizem, ainda que seja aprovado, dificilmente terá aplicação prática nos próximos meses, já que as farmacêuticas deverão antes cumprir os acordos firmados com os governos.

A proposta aprovada altera norma sancionada em março, que obrigava a doação de 100% das doses ao SUS enquanto os grupos prioritários não fossem imunizados, reduzindo para 50% o repasse compulsório de doses. Caso seja aprovado sem alterações também pelos senadores, o texto dará acesso à vacinação a empresários e funcionários antes das prioridades do Plano Nacional de Imunização (PNI), consideradas mais vulneráveis ao novo coronavírus.

A proposta, relatada pela deputada Celina Leão (PP-DF), foi apoiada por partidos do Centrão e pelo presidente da Casa, Arthur Lira (PP-AL). Partidos de oposição tentaram obstruir a votação, que começou anteontem, mas a maioria endossou o texto. Na votação do texto principal, foram 317 votos a favor e 120 contrários.

Pfizer e AstraZeneca já descartaram a venda para a iniciativa privada no Brasil.

Para Paulo Almeida, advogado e diretor do Instituto Questão de Ciência, outras farmacêuticas devem ter a mesma posição, pois, além de não terem entregue todas as doses contratadas pelos países, a preferência é por vendas em larga escala.

— As fabricantes não estão negociando com quem não é governo. Seria um erro estratégico de marketing grande ceder a pressões de um governo que pode acabar em dois anos ou de um empresariado que não está preocupado com a saúde coletiva —diz ele.

O Instituto não era contrário à aquisição de doses pela iniciativa privada quando havia o compromisso em impulsionar, também, o SUS. Agora, os empresários são dispensados de repassar doses caso as vacinas sejam integralmente utilizadas em seus funcionários.

Pelo projeto, a compra feita pela iniciativa privada com os laboratórios que já tenham contratos com o governo só poderá ser fechada “após a entrega já pactuada” com o SUS, mas a tentativa de dizer que não vai “atrapalhar” não funcionou para Almeida:

— O governo federal é que deveria comprar eventuais doses excedentes, não ceder isso para a iniciativa privada.

VACINAS SEM APROVAÇÃO

O projeto de lei também prevê a compra de imunizantes que ainda não foram aprovados pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). A aquisição poderá ser autorizada se o imunizante tiver sido aprovado por “qualquer autoridade sanitária estrangeira reconhecida e certificada pela Organização Mundial da Saúde”. Esse ponto é criticado pelo epidemiologista Sérgio Nishioka, consultor da Fiocruz e da OMS:

—Esta lei dribla o mecanismo de controle, e é muito arriscado. Se o produto for de qualidade inferior, a vacina pode não funcionar. É preciso entender que as agências reguladoras têm critérios.

O epidemiologista ainda levanta dificuldades práticas, caso o texto seja aprovado: como importar, conservar, distribuir e registrar as vacinas?

— O produto pode exigir condições de conservação que não necessariamente são simples para quem não faz isso sempre —diz.

Um documento do Departamento de Medicina Preventiva da Faculdade de Medicina da USP e do Instituto de Estudos em Saúde Coletiva da UFRJ fala em “retrocesso” no projeto de lei ao “oficializar a dupla fila, perpetuando desigualdades”. E afirma que “não há nenhuma experiência internacional em curso bem sucedida” na compra privada de vacinas.

Mesmo nos EUA, onde a vacinação ocorre no setor privado, ela é ofertada de forma gratuita pelo governo. Na Indonésia e nas Filipinas, a administração privada de vacinas tem a oposição da população. No México, a falta de fornecedores inviabilizou a compra privada autorizada desde janeiro.

—O Brasil já é pária internacional na resposta a casos e mortes pelo vírus, e vamos nos notabilizar negativamente pela vacinação —diz Lígia Bahia, sanitarista e pesquisadora da UFRJ, acrescentando que já há articulação de entidades para contestar o texto na Justiça.

Para a sanitarista, é pequeno o impacto da medida, tanto na fila quanto na redução de doentes e mortos, “frente à escala de vacinação que o Brasil precisa”.

— Os empresários de serviços querem vacinar seus trabalhadores com vacinas de segunda linha, que nem sequer foram aprovadas, para obrigar a volta ao trabalho — diz.

Carla Domingues, epidemiologista e ex-coordenadora do Programa Nacional de Imunizações (PNI), considera o projeto inócuo, “porque ninguém vai conseguir comprar vacina”, e diz que é “absurdo” as prioridades serem desconsideradas neste momento.

— Os grupos que têm mais risco de adoecer com gravidade e morrer são os idosos e comorbidades. É absurdo passar categorias, como forças de segurança, na frente deles. Todas as categorias são essenciais para o funcionamento do país.