O Globo, n. 32019, 06/04/2021, Mundo, p. 20

 

Tensão na fronteira opõe Colômbia e Venezuela
Marina Gonçalves
06/04/2021

 

 

 

Os confrontos entre grupos armados ilegais e as Forças Armadas da Venezuela no estado de Apure, na fronteira com a Colômbia, área negligenciada pelo Estado há mais de quatro décadas, chegaram a seu ápice nas últimas semanas, com oito militares venezuelanos mortos, além de 34 feridos — e um número ainda incerto de vítimas civis. Enquanto os dois países, que cortaram relações em 2019 após anos de idas e vindas, se acusam mutuamente pelos enfrentamentos, cresce a fuga de venezuelanos para o país vizinho: estima-se que cinco mil tenham deixado a Venezuela nos últimos dias.

 

Para analistas ouvidos pelo GLOBO, a crise está longe de ser solucionada, já que não existe a possibilidade de uma coordenação entre os dois países. Além disso, alertam, os grupos armados — formados por dissidentes das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc) e por membros do Exército de Libertação Nacional, ambos originalmente colombianos — já podem ser considerados binacionais.

Nesta segunda-feira, o governo venezuelano disse que criou um comando especial militar na zona de fronteira. Segundo o ministro da Defesa, Vladimir Padrino, a chamada Zona Operativa de Defesa Integral, ou Zodi, terá caráter temporário e atuará no estado de Apure.

O presidente venezuelano, Nicolás Maduro, que por anos tolerou a presença de paramilitares originários do país vizinho em seu território, defende que a atual campanha militar reflete a política de "tolerância zero em relação aos grupos armados colombianos irregulares". No domingo,  Maduro denunciou que os grupos, que ele vincula  ao presidente colombiano, Iván Duque, plantaram minas em território venezuelano, contribuindo para as baixas militares, e pediu ajuda da ONU para desativar os artefatos. Segundo Padrino, 16 explosivos foram desativados perto da cidade de La Victoria, epicentro do conflito.

Os analistas, porém, são céticos. A jornalista venezuelana Sebastiana Barráez, especializada em ações militares e nas questões da fronteira, explica que a situação atual é resultado das diferenças internas de dois setores dissidentes das Farc, que vinham disputando o território venezuelano de fronteira havia pelo menos dois anos. Segundo ela, um dos grupos, liderado por  Iván Márquez e Jesús Santrich, tem relações com altos funcionários do governo Maduro — em agosto de 2019,  Márquez, cujo paradeiro é desconhecido, anunciou uma "nova etapa da luta armada". O outro grupo de combatentes, que nunca deixou as armas e ocupava a região desde o acordo de paz com o governo colombiano, em 2016, vinha sendo encurralado pelas Forças Armadas da Venezuela.

—  Após operações contínuas na zona, no último dia 21 de março, lamentavelmente, um grupo de militares que fazia inspeção no local em busca do líder do grupo pisou em minas terrestres e dois deles morreram, aumentando as tensões —  explica Barráez.

Rocío San Miguel, da ONG Controle Cidadão, também já advertia sobre o comportamento assimétrico de Maduro no combate a grupos guerrilheiros na zona, especialmente no último ano.

— Nunca se atacava guerrilheiros do ELN, por exemplo, mas sim um grupo dentro da dissidência das Farc. Uma das teorias é que esse grupo rompeu o pacto que existia com o governo venezuelano e lançou uma represália — afirma San Miiguel ao GLOBO. — A questão é que as guerrilhas, pela forma de atuar, por seu controle territorial e pela capacidade de se articular, já são consideradas binacionais. Então o discurso de culpar a Colômbia não vale mais. A culpa não é do conflito colombiano. Abandonamos a fronteira há mais de quatro decadas.

Além do aparato militar, o governo Maduro usa a Força de Ações Especiais (Faes) da Polícia Nacional Bolivariana para atuar na região. A Faes é acusada, dentro e fora do país, de cometer abusos. A corporação acumula um histórico de  execuções extrajudiciais que levou a alta comissária de Direitos Humanos da ONU, Michelle Bachelet, a lançar em 2019 um pedido ao governo para que a dissolvesse.  Alguns dos venezuelanos que se refugiaram na cidade colombiana de Arauquita também denunciam que o Exército matou civis e os fez passar por guerrilheiros. 

Enquanto isso, os governos culpam um ao outro pelos confrontos. Maduro acusa Duque de permitir a expansão de grupos armados. A Colômbia e a oposição venezuelana, por sua vez, afirmam que, com a ofensiva, o presidente venezuelano tenta ajudar guerrilheiros dissidentes colombianos na  disputa com outra facção pelo controle do tráfico de drogas. Os dois países, que compartilham uma fronteira comum de 2.200 km, voltaram a romper relações, pela segunda vez neste século, depois que o governo Duque reconheceu o opositor Juan Guaidó como presidente interino da Venezuela, em janeiro de 2019.

— Não creio que nenhum dos discursos seja verdadeiro. Além do problema militar, de enfrentamento, há um problema político. E aí está a questão fundamental: graças à ruptura de relações, pensar em uma solução de diálogo para desescalar a situação é muito pouco provável — afirma Francine Jácome, diretora-executiva do Instituto Venezuelano de Estudos Sociais e Políticos (Invesp). — Outro ponto importante é que toda a informação vem do âmbito militar. As autoridades civis e prefeitos da região não se manifestaram publicamente. É uma visão totalmente militar, o que é muito perigoso.