O Globo, n. 32031, 18/04/2021, Mundo, p. 37

 

O retrato do Brasil que chega à cúpula

Renato Grandelle

18/04/2021

 

 

De país exemplar a pária climático, o Brasil sofreu uma reviravolta em sua política ambiental nos últimos cinco anos. O país recebeu recursos da ONU por reduzir o desmatamento entre 2014 e 2015 e doações bilionárias da Noruega e da Alemanha, congeladas após o atual governo extinguir comitês que orientavam o financiamento. Agora, o presidente Jair Bolsonaro chega à Cúpula de Líderes sobre o Clima reivindicando US$ 10 bilhões anuais para que o país neutralize as emissões de carbono até 2050, antecipando seu prazo original, que era 2060, para adequá-lo ao proposto por EUA e União Europeia. É uma cobrança incomum e de valor arbitrário, diferente das propostas apresentadas por outras nações nos documentos em que revisam suas metas do Acordo de Paris. Veja abaixo as principais questões que envolvem a participação do Brasil na cúpula.

Quais foram as metas apresentadas pelo Brasil no Acordo de Paris, de 2015?

O Brasil assumiu o compromisso voluntário de reduzir as emissões de gases de efeito estufa em 37% até 2025 e 43% até 2030, em relação aos níveis constatados em 2005. Também estabeleceu que o desmatamento ilegal da Amazônia seria zerado em 2030. O país foi elogiado na época por abrir um canal de diálogo entre os países em desenvolvimento e os desenvolvidos, que em geral se opunham na questão climática.

Cinco anos depois, em 2020, o que mudou?

O Brasil manteve ametade zerar o desmatamento ilegal até 2030, assim como os percentuais para a redução das emissões de carbono. No entanto, o índice de liberação de poluentes de 2005, o ano de referência, foi revisado, o que permitirá que o país cumpra o compromisso mesmo se o desmatamento da Amazônia for superiora 13 mil km ². Para comparação, a devastação da floresta em 2020 foi de 11.088 km². Além disso, o país previu compensar toda a sua emissão de carbono em 2060 — EUA e a União Europeia estimam cumpriram eta uma década antes. O governo afirmou que poderia anteciparo resultado, caso receba US$ 10 bilhões anuais de países desenvolvidos.

Essa cobrança é válida?

Não há um impedimento legal, mas não é um procedimento comum. Muitos países entregam à ONU suas metas para redução de emissões detalhando planos que poderiam ser executados caso recebam verbas adicionais. O Brasil, porém, está determinando o valor que quer receber e não mostra como pretende usar os recursos — quais ações tomará, em que prazo, com que parceiros, eventuais riscos.

Como foi a repercussão internacional?

A revisão do compromisso brasileiro foi considerada decepcionante, e o país não foi convidado a discursar em uma cerimônia em homenagem aos cinco anos do Acordo de Paris, em dezembro do ano passado, onde mais de 70 nações apresentaram os avanços de suas políticas ambientais. O Itamaraty apelou, sem sucesso, para que o país fosse incluído no evento.

O governo já recebeu recursos por reduzir o desmatamento?

Sim. Em 2019, o Brasil obteve US$ 96,5 milhões (cerca de R$ 540 milhões) do Fundo Verde do Clima (GCF, na sigla em inglês), devido à redução do desmatamento entre 2014 e 2015. O GCF foi criado pelo Acordo de Paris e financia projetos que contribuem para a redução das mudanças climáticas. Além disso, o país conta com o Fundo Amazônia, iniciativa de doação de recursos da Alemanha e da Noruega. No entanto, devido à extinção pelo governo de comitês que orientavam os projetos que seriam contemplados pelas verbas, estão congelados cerca de R$ 2,9 bilhões, segundo levantamento da rede Observatório do Clima enviado ao STF. O ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, reivindicou que o país receba US$ 1 bilhão na cúpula promovida por Biden para combater o desmatamento da Amazônia. Parte dos recursos seria usada na mobilização da Força Nacional, que reforçaria a fiscalização da floresta.

Os países desenvolvidos devem dinheiro às nações em desenvolvimento?

Em 2009, os países desenvolvidos se comprometeram a criar um fundo anual de US$ 100 bilhões até 2020 para financiar projetos climáticos em nações em desenvolvimento. O Brasil cobra esses recursos, mas, para isso, precisa apresentar os projetos em que pretende investir. Além disso, mais de 150 países concorrem à verba, entre eles alguns Estados insulares, que podem desaparecer até o fim do século, devido ao aumento do nível do mar.

O desmatamento é fonte de mais de metade da liberação de poluentes pelo país. Como pode ser reduzido?

A principal medida seria injetar mais recursos na área ambiental. O orçamento do Ministério do Meio Ambiente (MM A) previsto para2021éo menor desde o início do século. Houve, também, uma redução de 29,1% dos de recursos para o Ibama e de 40,4% para o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio) este ano, em relação aos valores de 2019. Para compensara perda de recursos financeiros e humanos das autarquias do MMA, ambientalistas defendem que as Forças Armadas deem suporte às operações do Ibama.

Qual será o plano apresentado pelo governo na cúpula?

O Brasil deve levar à mesa o Plano Amazônia 2021/2022, assinado pelo vice-presidente Hamilton Mourão na última quarta-feira, que visa nortear a conservação do bioma nos próximos dois anos. O programa, no entanto, é pouco ambicioso, porque permite que a taxa de desmatamento atinja 8,7 mil km² ao final de 2022, um valor 16% superior ao visto em 2018, ano anterior ao início do governo Bolsonaro. Além disso, o texto não informa o contingente e o orçamento necessários para sua execução, e institui um prazo muito curto — em alguns casos, de apenas 15 dias —para que ministérios comecem a adotar medidas complexas, como o deslocamento de servidores e infraestrutura para a conservação da floresta.

Como as organizações ambientalistas reagiram?

Marcio Astrini, secretárioexecutivo do Observatório do Clima, avalia que o plano é uma “carta de despedida do Mourão”, que preside o Conselho Nacional da Amazônia: “Em alguns trechos, o plano diz: ‘o governo precisa planejar’. Não quer dizer nada”. Fabiana Alves, coordenadora da Campanha de Clima do Greenpeace, considera o plano “vazio” e “uma tentativa desesperada de receber recursos externos sem, de fato, se comprometer em conter as mudanças climáticas”.

Que meta ambiciosa, como cobrado por Biden, poderia ser assumida pelo governo?

Paulo Moutinho, cientista sênior do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam), destaca que o governo federal deve dar uma finalidade às terras públicas não destinadas — uma área de 50 milhões de hectares, equivalente ao tamanho da Espanha, onde ocorre até 30% do desmatamento do país, e que é extensivamente usada para grilagem. De acordo com a lei, ela deve ser convertida em unidades de conservação ou territórios indígenas. O climatologista Carlos Nobre recomenda a criação de uma PEC que proteja o Código Florestal de projetos de lei e medidas provisórias ligadas à regularização fundiária, que, em última instância, podem contribuir para a anistia ao desmatamento ilegal — foi o caso da MP 910, conhecida como MP da Grilagem, que caducou em maio do ano passado no Congresso. O governo Bolsonaro é favorável à reforma do Código.