O Globo, n. 32029, 16/04/2021, País, p. 7

 

Garimpeiros pagam ida de indígenas a Brasília para pressionar  STF

Daniel Biasetto

16/04/2021

 

 

Lideranças do garimpo ilegal que exploram a Terra Indígena Munduruku, no Sudoeste do Pará, articularam uma vaquinha entre empresários, comerciantes e moradores dos municípios de Jacareacanga e Itaituba para enviar, no momento mais crítico da pandemia de Covid-19, ônibus “lotados de índios” a Brasília, com o objetivo de pressionar o Supremo Tribunal Federal (STF) e o Congresso a favor de suas demandas. A intenção é que eles se posicionem contra a retirada dos invasores da área indígena determinada pelo ministro Luís Roberto Barroso (STF) e peçam o apoio de parlamentares pela aprovação do projeto de lei 191/20, da Câmara, que libera mineração nessas terras.

O Ministério Público Federal (MPF) enviou recomendação a ministérios e órgãos públicos em Brasília para que não negociem com o grupo que está a caminho da capital federal. O MPF sugere que não devem ser feitas tratativas com a comitiva sobre planejamento e operação de ações de repressão e retirada de garimpeiros e mineradores ilegais das terras Munduruku. Segundo o MPF, a comitiva “não representa o interesse da maioria da etnia Munduruku, e sim apenas o interesse de mineradores ilegais que aliciaram e financiam o grupo minoritário”. Os órgãos federais têm 24 horas para apresentar respostas.

ESTRATÉGIA DE COOPTAÇÃO

Na recomendação, o MPF aponta que permanece em vigor “um estado de coisas totalmente ilegal e inconstitucional, em que, de maneira evidente, determinados grupos organizados se sentem à vontade não apenas para incorrer em crimes, como também para aliciar e buscar intervir politicamente nas decisões dos órgãos e entidades de proteção territorial e de prevenção e repressão aos ilícitos ambientais, inclusive para promover atos de violência e interferir na realização da fiscalização ambiental”.

A recomendação foi enviada à Funai, à Agência Nacional de Mineração, ao Ibama e às secretarias executivas dos ministérios de Meio Ambiente; Agricultura, Pecuária e Abastecimento; Justiça e Segurança Pública; e Minas e Energia.

O GLOBO teve acesso a diversos áudios posta dosem grupo de comunicação em que garimpeiros e uma liderança indígena discutem a estratégia de cooptar os índios e arrecadar recursos de quem se beneficia da prática de extração de ouro ilegal na região para fazer a viagem até Brasília. Ao menos dois micro-ônibus já deixaram Jacareacanga com destino ao DF. A reportagem também teve acesso a dois comprovantes de depósito de R$ 1 mil cada, mas os valores de doação vã ode R $200 a R$ 10 mil. Até o meio da tarde de ontem já haviam sido arrecadados cerca de R$ 90 mil.

Abastecida pelo garimpo ilegal na área dos Munduruku, a região de Jacareacanga, a 1.800 quilômetros de Belém, vive uma situação tensa após a decisão do ministro do STF Luís Roberto Barroso para retirada dos invasores. No mês passado, a sede da Associação das Mulheres Indígenas Munduruku foi atacada por garimpeiros e indígenas aliciados. Anteontem, um grupo de garimpeiros bloqueou a BR-230 em protesto contra as operações federais de combate ao garimpo ilegal. Um pequeno grupo de indígenas estaria, segundo interlocutores, liberando a entrada de garimpeiros em troca de porcentagem da venda de ouro.

“DINHEIRO PARA SOLTEIRAS”

Numa das gravações, O GLOBO identificou Vilelú Inácio de Oliveira, o Vilela, como um dos líderes dos garimpeiros que promove a caravana. No áudio destinado a um grupo de uma cooperativa, Vilela cita a decisão do STF e diz que“desta vez é ordem judicial que terá de ser cumprida pela Polícia Federal, Ibama e Exército”.

“Mais uma vez se vê necessário ir para Brasília levar uns dois ônibus lotados de índios para nós tentarmos reverter esse quadro da Polícia Federal, que está preparada para vir aqui dentro da área indígena junto com Ibama e Exército, mas dessa vez é ordem judicial, não tem como eles saírem fora”, diz Vilela, indicando que em outras operações comandadas pelo vice-presidente Hamilton Mourão, via Garantia da Lei e da Ordem, era “mais fácil de resolver”.

Em outra gravação, o índio Josias Munduruku repassa pedido de contribuição:

“Amigos garimpeiros. Venho pedir contribuição para nós fazermos uma viagem juntamente com lideranças que estão a favor do garimpo. Dia 15 queremos viajar para Brasília, fazer grande manifestação em prol do nosso garimpo, dentro donos so território, eé por isso que venho pedir contribuição (...). Dia 19 de abril ,Dia do Índio, haverá grande manifestação em prol de mineração em nossas terras”. Vilela e Josias não foram localizados para falar dos áudios.

Também em áudio, o prefeito de Itaituba, Valmir Climaco (MDB-PA), pede que desempregados procurem o garimpo como opção de trabalho e sugere que mulheres solteiras, “além de cozinhar e lavar as roupas para garimpeiros, têm grandes chances de ganhar um dinheirinho” extra: “Você mulher que tem um marido preguiçoso, só para você ter uma noção :30 gramas de ouro que uma cozinheira ganha no garimpo. Ela cozinha e ainda lava as roupas dos garimpeiros para receber um dinheirinho. E se ela for solteira, ainda faz outra coisa e ainda ganha outro dinheirinho”.

Ao GLOBO, o prefeito, que é garimpeiro, reafirmou as declarações. E disse que ao falar de mulheres solteiras, referia-se a namoro.