O Globo, n. 32027, 14/04/2021, Economia, p. 21

 

Renda cai, carne sai do cardápio, e frigoríficos suspendem o abate

Letycia Cardoso

14/04/2021

 

 

A combinação de crise econômica, renda do brasileiro em queda e disparada da arroba do boi, que já subiu 60% em um ano, faz da carne bovina item cada vez mais raro no cardápio das famílias. Muitas passaram a escolher o dia da semana para incluir o produto no prato ou passaram a substituí-lo por proteínas mais em conta, como frango e ovo.

Diante da queda na demanda doméstica, par tedos frigoríficos suspendeu temporariamente o sab atese o processamento de carne. Outra estratégia foi se volt arpara as exportações, que continuam em alta. Segundo analistas, o cenário deve pressionar ainda mais o preço da carne para o consumidor.

Segundo o presidente da Associação Brasileira de Frigoríficos (Abrafrigo), Paulo Mustefaga, diversas unidades de pequeno, médio e grande portes passaram por paralisações ou ainda estão paradas. A arroba do boi alcançou a máxima histórica de R$ 320, motivada por baixa oferta de gado e forte demanda externa. Mas a redução do poder de compra das famílias afeta o setor, pois 70% da produção são voltados ao mercado doméstico.

—O preço do boi subiu cerca de 60% em um ano, e a indústria conseguiu repassar, no máximo, 40% dos custos. (O setor) está com uma dificuldade muito grande de fechar as contas —disse Mustefaga.

‘TEMOS QUE FAZER ESCOLHAS’

Incluir a carne no cardápio também se tornou uma dificuldade para a professora municipal Tatiana Braga, de 40 anos. Ela diz que só compra para a família, que inclui o marido e a filha, quando há promoção no supermercado.

— Está difícil fechar o mês no azul. Os preços estão ficando exorbitantes. Temos que fazer escolhas. Nesta semana, só compramos frango, linguiça e ovo. À noite, em vez de jantar, estamos fazendo omelete, lanches, coisas que economizem. O gasto com alimentação só não é maior porque estou trabalhando em regime presencial e consigo almoçar na escola —disse.

Em março, as exportações de carne bovina avançaram 8% em relação a igual mês do ano passado, impulsionadas pelo aumento nas compras da China, segundo a Abrafrigo.

As empresas já ajustam sua produção a este cenário. A Marfrig, segunda maior processadora de carne bovina, confirmou à Reuters que concedeu férias coletivas aos colaboradores “como parte da estratégia de produção” na unidade de Alegrete, no Rio Grande do Sul. Após 30 dias de suspensão, as atividades foram retomadas no último dia 1º. A empresa também paralisou temporariamente, em março, as atividades na unidade de Chupinguaia, em Rondônia.

Em Goiás, a Frigol, o quarto maior frigorífico de bovinos no país, encerrou as operações em Cachoeira Alta para focar nas unidades habilitadas para exportação. Segundo o CEO da empresa, Marcos Câmara, a decisão foi motivada, entre outros fatores, por sera única fábrica com maior dependência da demanda interna:

— Temos outras duas plantas habilitadas para a China e uma terceira que atende aos protocolos para embarcara Israel ... No ano passado ,42% da receitada Frigol foram com exportação; neste ano, pretendemos passar de 50%.

APETITE CHINÊS

Segundo o professor de Economia do Ibmec-RJ Tiago Sayão, ao suspender abates, os frigoríficos ganham tempo até encontrarem condições mais favoráveis para compra de insumos ou para mudar o plano de negócios e se voltar para a exportação. Apesar de o Brasil usar soja e milho par aração, há ainda o impacto de itens importados para suplementação, o que impacta os custos em um cenário de dólar alto.

—Vários frigoríficos atendem simultaneamente os mercados interno e externo. Eles podem se adequar somente à carne exportada. Vendem em menor quantidade, mas o preço da arroba é maior, então compensa.

Segundo a Bolsa de Gêneros Alimentícios do Estado do Rio de Janeiro (BGA), a maior demanda estrangeira por carnes de segunda, como acém, paleta e peito, contribuiu para um reajuste de 30% nos preços destes itens e de 15% nos valores das carnes de primeira nos últimos 45 dias. Segundo André Lemos, diretor social da BGA, os preços praticados nos mercados externo e interno chegam a ter variação de até R$ 40 por arroba. Ele estima que a normalização deve levar ao menos quatro meses, quando houver aumento na oferta de animais:

— Além de comprar em volume maior, a China paga mais caro pelo quilo. Já a Arábia Saudita compra carne de segunda. Esse aumento na demanda aproximou os preços das carnes de segunda e de primeira.

Para as famílias, a menor quantidade de carne disponível no mercado interno deve fazer o item pesar ainda mais no bolso, segundo André Braz, economista da Fundação Getulio Vargas (FGV):

—A carne foi um dos itens que mais subiram nos últimos 12 meses, com alta de quase 25%. Esse movimento pode gerar aceleração ainda maior na inflação. Há chance de as famílias, mesmo com esse aumento, continuarem comprando, porque o bife é um dos produtos preferidos. Para isso, pode ser que abram mão de supérfluos.