Correio Braziliense, n. 21.141, 12/04/2021. Opinião, p. 9

 

Renato Zerbini Ribeiro: a vacina, a propriedade intelectual e os direitos humanos

Renato Zerbini Ribeiro

12/04/2021

 

 

À luz dos direitos humanos, o acesso às vacinas deve ser garantido pelos países para todas as pessoas no máximo de seus recursos disponíveis e conforme as medidas necessárias para uma vacinação universal e sem discriminação alguma. O dever de imunizar contra as principais doenças infecciosas, prevenindo e controlando epidemias, é uma obrigação prioritária em consequência do direito à saúde. No atual cenário pandêmico, os países têm de dar máxima prioridade à disponibilização das vacinas capazes de contribuir para o enfrentamento da covid-19. Esse acesso é um direito do ser humano. Os países têm a obrigação de facilitar informações fidedignas, transparentes e fincadas nos melhores conhecimentos científicos para que a cidadania decida vacinar-se ou não. Nessa esteira, toda trava administrativa e burocrática deve ser superada em prol de políticas públicas céleres e eficazes para o acesso universal e equitativo às vacinas.

Conforme a Declaração de Doha, da Organização Mundial do Comércio sobre os Aspectos Relacionados ao Comércio do Acordo de Direitos de Propriedade Intelectual TRIPS e Saúde Pública (2001), o regime de propriedade intelectual deve ser interpretado e implementado de forma a apoiar o dever dos países em proteger a saúde pública. As empresas têm responsabilidades com relação ao acesso a medicamentos, ingredientes farmacêuticos ativos e vacinas. Portanto, também devem se abster de invocar direitos de propriedade intelectual de maneira inconsistente com o direito de todas as pessoas de acessar uma vacina segura e eficaz para covid-19 ou com o direito dos países de exercer as flexibilidades do TRIPS.

O direito à saúde exige que os países tornem acessíveis, aceitáveis e de boa qualidade as unidades, serviços e bens da saúde, incluindo as vacinas. Estas não devem ser apenas produzidas e disponibilizadas, também devem, conforme reza o princípio da igualdade e não discriminação, ser acessíveis para todos, sem nenhuma trava de ordem religiosa, de nacionalidade, de orientação sexual, pobreza ou outra qualquer. Pelo contrário, a acessibilidade física às vacinas, especialmente para grupos marginalizados e desfavorecidos, valendo-se de canais estatais ou privados, notadamente por meio do fortalecimento da capacidade de suas entregas e distribuições, deve ser garantida. Senão ainda, o fornecimento gratuito das vacinas, especialmente para pessoas de baixa renda e em situação de pobreza, deve ser assegurado. Ademais, sobretudo nessa era digital e das fake news, o acesso a informações relevantes, cientificamente comprovadas, sobre segurança e eficácia das diferentes vacinas, potencializado por campanhas públicas capazes de proteger as pessoas contra informações falsas ou pseudociências, deve ser robustamente garantido. Finalmente, ninguém deve ficar para trás se decidir tomar uma vacina.

Muitas vacinas, na iminência de suas aprovações, foram desenvolvidas por empresas privadas e podem estar sujeitas ao regime de propriedade intelectual. Essas empresas esperam obter lucro e é justo que recebam uma compensação razoável por seus investimentos. No entanto, a propriedade intelectual não é um direito humano, mas um produto social, com uma função social. Consequentemente, os países têm o dever de impedir que a propriedade intelectual e os regimes legais de patentes prejudiquem o gozo dos direitos humanos. Assim, também cabe às entidades empresariais absterem-se de invocar direitos de propriedade intelectual incompatíveis com o direito humano à saúde, nesse contexto materializado pelo acesso a uma vacina segura e eficaz contra a covid-19. É uma obrigação dos países garantir, à brevidade possível e por todos os meios necessários, inclusive mediante assistência e cooperação internacional, o acesso universal e equitativo às vacinas.

A priorização do acesso às vacinas deve ser apoiada por todos, devendo esta ser organizada mediante mecanismos transparentes e participativos garantidores de uma distribuição global baseada em necessidades médicas reais e considerações científicas de saúde pública. Todo ser humano que assim desejar, poderá e deverá vacinar-se. Isso é crucial para o controle da pandemia de covid-19. (...)

RENATO ZERBINI RIBEIRO LEÃO - Ph.D. em direito internacional e relações internacionais e presidente do Comitê de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais das Nações Unidas