O Globo, n. 32023, 10/04/2021, País, p. 6

 

Associação mira agenda conservadora no Supremo

Marlen Couto

Filipe Vidon

10/04/2021

 

 

Responsável pelo pedido para liberar o funcionamento de igrejas na pandemia, a Associação de Juristas Evangélicos (Anajure) atua em 17 processos, já julgados ou em andamento, no Supremo Tribunal Federal (STF). A entidade participa das ações como amicus curiae, expressão em latim que significa "amigo da corte" para designar uma instituição que oferece argumentos para ajudar os tribunais em questões de grande impacto. Os casos envolvem principalmente temas relacionados a gênero e sexualidade. Na pandemia, porém, a associação deu uma guinada: passou a ser ela mesma autora de pedidos de Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF). Foram três desde o início da crise sanitária. Um deles avançou com a decisão do ministro Nunes Marques, depois derrubada pelo plenário esta semana, de negar a possibilidade de fechamento de igrejas.

Fundada em 2012 e sediada em Brasília, a Anajure tem mais de 700 membros, integrantes dos mais diversos órgãos ligados ao Poder Judiciário no Brasil, além de professores e estudantes de Direito. Um de seus principais membros, à época da fundação, foi a hoje ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves.

O núcleo fundador da Anajure tem ligações com as chamadas igrejas protestantes históricas, como Presbiteriana e Batista, mas a entidade conta com representantes de diferentes denominações. Um dos fundadores e atual presidente, o advogado Uziel Santana, diz que a associação tem como finalidade defender na esfera pública a liberdade religiosa e auxiliar igrejas e outras organizações religiosas, esclarecendo dúvidas jurídicas e representando seus interesses.

Um dos casos emblemáticos, e no qual a Anajure passou a ter protagonismo no cenário político nacional, diz respeito à criminalização da homofobia. A entidade já havia costurado no Congresso uma reação a um projeto de lei com a proposta e voltou a se manifestar, em 2019, no julgamento em que o STF decidiu pela tipificação da homofobia. O argumento da Anajure foi que o tema deveria ser tratado pelo Congresso e que a criminalização não poderia representar tolhimento ao discurso religioso baseado em livros sagrados, como a Bíblia, assegurando o pleno exercício da liberdade religiosa. O pleito acabou atendido em parte pela Corte: religiosos não podem ser enquadrados na lei, caso não promovam discurso de ódio.

Desde então, a Anajure intensificou sua participação como amicus curiae. Há ações apoiadas pela entidade sobre leis municipais em diversos

Estados que proíbem a discussão de teorias sobre gênero em escolas públicas, e a inclusão da prevenção e ao combate ao bullying homofóbico nas escolas brasileiras. A Anajure também tem mirado cortes internacionais e tem forte ligação com entidades cristãs conservadoras estrangeiras. A antropóloga e professora da Universidade de São Paulo Jacqueline Moraes Teixeira, que pesquisa a religiosidade e o segmento evangélico, destaca que Anajure começou a atuar principalmente no Legislativo, com assessoria em projetos de lei para a bancada evangélica, aproximou-se do

Executivo com a eleição do presidente Jair Bolsonaro, e agora intensifica seu ativismo no Judiciário, por meio principalmente do STF, tribunal que vem tomando medidas contrárias a ideais da entidade, como a criminalização da homofobia e a liberação de aborto de fetos anencéfalos. —É um projeto de ocupação do Estado que vai se estendendo. O Estado é visto como o lugar onde todo mundo precisa garantir representatividade, e um papel fundamental da Anajure é produzir um modelo de representatividade evangélico, que é um segmento diverso —diz a pesquisadora. Professor de Direitos Humanos e Processo Legislativo da FGV Direito Rio, Michael Mohallem também vê relação no crescimento da entidade com a ascensão do bolsonarismo, que promove, na sua avaliação, uma valorização da religiosidade como elemento de debate na esfera pública: —Iniciativas como essa associação crescem muito quando Bolsonaro começa a sinalizar que quer ministros conservadores para os tribunais superiores e para o STF, porque passam a ser canal de diálogo, um interlocutor, para escolhas de juízes nos tribunais.

DIÁLOGO COM GOVERNOS

Uziel Santana, presidente da Anajure, diz que a atuação no STF é decorrente da defesa de liberdades civis fundamentais expressas na Constituição, já que a Corte é a guardiã do texto constitucional: —Isso significa que em muitos casos será na Corte o local onde se estabelecerão balizas de tutela e promoção dos direitos fundamentais. O presidente da associação ressalta ainda que a instituição não defende indicação de juízes para o Supremo tendo como critério determinante sua identidade ou filiação religiosa, e que busca diálogo com o governo Bolsonaro tanto quanto buscou com os anteriores.

"Iniciativas como essa crescem muito quando Bolsonaro começa a sinalizar que quer ministros conservadores" _ Michael Mohallem, professor

Da FGV Direito Rio