O Globo, n. 32020, 07/04/2021, Sociedade, p. 11

 

A fome na pandemia

Cássia Almeida

Raphaela Ramos

Vera Araújo

Pedro Ladeira

Ana Letícia Leão

07/04/2021

 

 

No galpão da Ação da Cidadania, na Gamboa, região central do Rio, 600 cestas básicas se perdem num imenso espaço diante da escassez de doações. Perto dali, dezenas de pessoas se aglomeram, em tempos de pandemia, em uma fila em frente à Biblioteca Parque, na Avenida Presidente Vargas, também no Centro. O motivo nãoéa procura por livros, mas abusca porqu entinhas distribuídas na horado almoço pelo governo estadual.

Há 28 anos à frente de campanhas contra a fome, a ONG Ação da Cidadania diz que a ajuda de alimentos encolheu. Se, no ano passado, foram distribuídas 80 mil cestas por mês, a campanha agora só consegue 8 mi lacada 30 dias.

Na capital paulista, o G 10 Favelas, iniciativa formada por líderes das 10 maiores comunidades do país que auxilia as famílias mais impactadas pela pandemia, viu sua produção diária de 10 mil marmitas despencar para 700.

—As doações caíram dr as ticam ente. É o Brasildo home office e o Brasil da fome. (Como não saem de casa), as pessoas não estão enxergando a fome — lamenta Gilson Rodrigues, presidente do G10.

ACELERAÇÃO DA FOME

Enquanto os donativos minguam, a mesa do brasileiro segue cada vez mais vazia. Pela primeira vez em 17 anos, mais da metade da população não teve certeza se haveria comida suficiente em casa no dia seguinte, teve que diminuir a qualidade e a quantidade do consumo de alimentos e até passou fome.

São 116,8 milhões de pessoas nessa situação de insegurança alimentar no Brasil, segundo pesquisa da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan), que reúne pesquisadores e professores ligados à segurança alimentar.

A pandemia deixou ainda 19 milhões com fome no ano passado, atingindo 9% da população brasileira, a maior taxa desde 2004, há 17 anos, quando essa parcela tinha alcançado 9,5%. E quase o dobro do que havia em 2018, quando o IBGE identificou 10,3 milhões de brasileiros nessa situação.

“A pesquisa revela um processo de intensa aceleração da fome, com um crescimento que passa a ser de 27,6% ao ano entre 2018 e 2020. Entre 2013 e 2018, o aumento era de 8% ao ano. Chegamos ao final de 2020 com 19 milhões de pessoas em situação de insegurança alimentar grave, mas podemos supor que agora no primeiro trimestre deste anoa situação já piorou ainda mais. É urgente conter essa escalada. Não se pode naturalizar essa questão como uma fatalidade sobre a qual não se pode intervir”, destaca Francisco Menezes, analista de Políticas e Programas da ActionAid.

SITUAÇÃO DE DESESPERO

O retrato da fome pode ser observado no rosto de homens, mulheres e crianças que, diariamente, aguardam a refeição oferecida pelo “RJ Alimenta”, ação estadual que atende, desde agosto do ano passado, as pessoas que mais sofreram os impactos da pandemia. Previsto para acabar em fevereiro de 2021, o programa teve que ser estendido. Segundo o estado, já foram distribuídas 1,2 milhão de refeições no espaço da Biblioteca Parque.

Perto dali, no Largo da Carioca, outra longa fila de pessoas em busca de uma quentinha, também todos os dias. Neste ponto, a distribuição fica por conta do Serviço Franciscano e Solidariedade (Sefras).

O perfil de quem tem fome é quase sempre o mesmo: desempregados ou pessoas que viviam da informalidade, mas que ficaram sem poder trabalhar por conta das medidas restritivas impostas pela pandemia. Como o auxílio emergencial estava suspenso, as filas aumentaram.

Juliano Rosa Filho, de 37 anos, que perdeu o emprego há três meses, precisou entregar o apartamento onde morava de aluguel, em Sepetiba, na Zona Oeste da cidade, e agora comparece rigorosamente no mesmo local e horário para não perder o café da manhã e o almoço do dia.

— A situação de pandemia está levando muita gente ao desespero. E não adianta só dar comida, os governantes têm que dar emprego pra gente sair dessa situação. Vejo aqui não só morador em situação de rua que vem buscar refeição, mas gente que não tem opção. Tem pessoas de favelas que acabam se mudando para as ruas pra poder ficar mais próximas das entregas de comida — afirma Rosa Filho, enquanto esperava sua vez para pegar uma das mil refeições.

Após deixar o trabalho como auxiliar de cozinha e limpeza num dos abrigos da Prefeitura, Rosa Filho, pai de duas meninas, de 8 e 13 anos, que moram em Bangu co mamãe, foi trabalhar de manobrista no Centro.E conta que precisou abandonar o bico, pois entrou em rota de colisão com os guardadores locais, por não haver uma fiscalização do município. Agora migrou para outra função na informalidade: descarrega caminhões no Centro.

Quem também precisou recorrer às quentinhas na pandemia foram ambulantes e camelôs. Praticamente sem clientela, Elias Batista, de 53 anos, pegou sua refeição gratuita pela primeira vez na última Sexta-Feira Santa. Morador da comunidade Vila Cruzeiro, ele pedala por 1h30 até o Centro na tentativa de vender seus produtos, que incluem pomada e meias para idosos.

— Hoje ainda vou à praia. Vou almoçar lá e ver se tem algum gato pingado pra comprar os protetores solares que eu trouxe. Desde a pandemia, mudou muito, precisa nem falar, só ver aí o tamanho da fila e a quantidade de gente na rua. Antes, dava pra sobreviver. Mas, graças a Deus, meus filhos estão criados, e eu não pago aluguel —afirma Batista.

Presidente do Conselho da Ação da Cidadania, Daniel de Souza, de 55 anos, que toca o legado do pai, o sociólogo Herbert de Souza, o Betinho, na luta contra a fome, prevê que, ao fim da pandemia, a fome se intensifique ainda mais em função do desemprego.

—Existe cansaço, crise e desesperança. A redução é percebida por todas as ações de combate à fome. Chama a atenção o caso de pessoas que antes eram doadores e, atualmente, pedem uma cesta básica. O empobrecimento é geral. São empresas fechando, pessoas desempregadas, gente morrendo. O quete m mantido nossas doaçõe sé a fidelização por parte de empresários — explica Daniel, para quem o trabalho da Ação da Cidadania é “simbólico”. — Há a necessidade de políticas públicas.