O Globo, n. 32018, 05/04/2021, País, p. 7

 

Entrevista – Abel Gomes: “Avanços de ações gerou tensão com  executivo e legislativo”

Abel Gomes

Chico Otavio

05/04/2021

 

 

Abel Gomes / DESEMBARGADOR Do TRF-2

O desembargador Abel Gomes, relator da Lava-Jato do Rio no Tribunal Regional Federal da 2ª Região (TRF-2), surpreendeu o Judiciário ao pedir aposentadoria na semana passada — aos 62 anos, 13 antes da ida deda saída compulsória. Embora a razão alegadas eja“de naturezapar ater tempo dese dedicara outros projetos, o gesto ocorreu dias depois de decisões tomadas pelo Supremo Tribunal Federal que esvaziaram aforçada Lava-Jato no país, como a suspeição do ex-juiz Sergio Moro no caso do tríplex do Guarujá e a anulação das condenações do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

A classe política reclama do “ativismo judicial”. Há excessos? A que se deve essa reação?

Não há um ativismo judicial marcante na atuação da Justiça criminal, especialmente nos processos que envolveram uma parte dos políticos. No caso da jurisdição penal, quando ela passou a ser exercitada em relação a alguns episódios de corrupção que suplantaram o corriqueiro caso do guarda de trânsito da esquina pedindo R$ 50 para não multar um motorista infrator, e avançou contra a atuação de agentes políticos de mais relevo no poder de decisão e ordenação de despesas, sem dúvida gerou tensões com os Poderes Executivo e Legislativo, mas essas tensões estão ocorrendo em todo o mundo.

As decisões mais recentes dos tribunais superiores, em relação a questões envolvendo a Lava-Jato, pesaram na sua decisão?

Não. Como eu poderia ter sido juiz por tanto tempo (28 anos) e me dizer abalado por essa razão? Ou estaria durante todo esse tempo na profissão errada, ou nada teria aprendido dela. Um juiz não é o dono das suas decisões nem se apega a elas.

Conversas gravadas ou captadas ilegalmente de meios de comunicação podem ser usadas como prova criminal?

Essa matéria já foi decidida por nossos tribunais algumas vezes. Se João é acusado de matar Maria e pode ser condenado a mais de 20 anos de prisão, e alguém surge com uma gravação obtida clandestinamente onde se diz que quem matou Maria foi Joaquim, essa prova pode ser usada para inocentar João, mas não para condenar Joaquim. Mas mesmo nesse caso, dizer que Joaquim foi quem matou Maria sempre lhe trará alguma consequência negativa, ainda que de natureza moral. Por isso, é necessário que também seja examinado como a prova ilícita foi obtida e como está sendo usada.

O senhor acha que, em algum momento, ultrapassou-se o limite ético e legal nas relações entre magistrados, procuradores da República e advogados na Lava-Jato?

Não me cabe fazer avaliações de natureza processual em torno dos diálogos obtidos ilicitamente por hackers e divulgados pelo Intercept, porquanto é questão que está sub judice, além de carecer de maior transparência quanto à metodologia de seleção dos diálogos que são divulgados. Todavia, por outro lado, convém considerar que, se todos os juízes do país tivessem uma agenda organizada de atendimentos pessoais aos representantes das partes que pedem para ser recebidos para despacho em seus gabinetes, veríamos, sem medo de errar, que mais de 90% desses encontros do juiz ocorrem com advogados particulares. E estou aqui considerando apenas os processos criminais. A verdade é que no Brasil as relações entre juízes, procuradores, advogados e até acusados é bastante flexível e sem nenhuma regulamentação fechada específica. Por fim, não se deve ignorar que, quando o homem quer atuar à margem da lei, nem mesmo a lei ou os regulamentos serão capazes de detê-lo, e os expedientes utilizados não são jamais tão evidentes como o uso de dispositivos e aplicativos, por exemplo.

Qual foi a contribuição da delação premiada para a instrução criminal no Brasil?

Foi essencial para, por exemplo, a recuperação aos cofres públicos de bilhões e bilhões de reais desviados, ou gastos como pagamento de propina embutido no preço de contratos públicos adjudicados ilicitamente. Somente isso já demonstra a importância do instituto. O que ela (delação) não pode é se transfigurar em acusações infundadas, sem amparo em elementos que devem ser apontados pelo colaborador como capazes de corroborar a imputação que é feita.