O Globo, n. 32018, 05/04/2021, País, p. 4

 

Reação a Nunes Marques
Natália Portinari

Leandro Prazeres

Marlen Couto

05/04/2021

 

 

A decisão do ministro Kassio Nunes Marques de liberar missas e cultos religiosos presenciais, derrubando decretos de proibição editados por governadores e prefeitos, gerou insatisfação no Supremo Tribunal Federal (STF), e integrantes da Corte defendem que o tema seja levado a plenário o mais rapidamente possível —cabe ao presidente do STF, Luiz Fux, definir a pauta de votações. No ano passado, por unanimidade, a Corte determinou que gestores estaduais e municipais têm atribuição de estipular medidas de isolamento social. Ministros alegam preocupação com a possibilidade de a autorização irrestrita gerar aglomerações no momento em que o país atravessa o pior momento da pandemia.

O primeiro a se manifestar publicamente em reação à decisão de Nunes Marques foi o decano do tribunal, Marco Aurélio Mello:

—Não temos expertise na área (de saúde) nem somos Executivo —afirmou.

Outros ministros da Corte ouvidos reservadamente pelo GLOBO avaliaram que a liminar de Nunes Marques contraria a decisão de 2020 que dá autonomia para os entes da federação na pandemia.

A controvérsia fez com que o prefeito de Belo Horizonte, Alexandre Kalil (PSD), inicialmente, afirmasse que seguiria a decisão do colegiado e que os templos permaneceriam fechados. Ontem à tarde, ele mudou o tom e disse que “ordem judicial se cumpre”. Kalil entrou com recurso no STF pedindo a manifestação de Fux. Na peça, a procuradoria geral do município argumenta que a manutenção dos templos fechados visa reduzir a disseminação da Covid-19.

O presidente da Frente Nacional dos Prefeitos, Jonas Donizette, também pediu que Fux se manifeste “urgentemente” sobre a questão. Por meio da assessoria, Fux afirmou ontem que não faria comentários.

O ministro Gilmar Mendes é relator de uma ação semelhante, do PSD, também pedindo a liberação de atos religiosos. Uma das estratégias aventadas nos bastidores é que Gilmar rejeite esse pedido, forçando que o tema seja tratado pelo plenário, diante de decisões divergentes sobre o mesmo assunto.

A interlocutores, Fux disse que cabe ao relator, Nunes Marques, liberar a ação para ser pautada em plenário, o que só deve ocorrer após a Procuradoria-Geral da República (PGR) ser ouvida no processo. Na ação que está nas mãos de Mendes, o procurador-geral da República, Augusto Aras, e o advogado-geral da União, André Mendonça, defenderam a liberação presencial dos atos religiosos. Os dois buscam o apoio do segmento evangélico na disputa pela vaga que será aberta em julho no STF com a aposentadoria de Marco Aurélio.

Ministros da Corte afirmam, por outro lado, não ser necessário Nunes Marques aguardar a PGR para levar sua decisão ao colegiado, já que considerou ser possível dar uma liminar antes disso.

— Para o relator atuar não foi preciso. Para o colegiado maior será? Enquanto isso, tem-se espaço para contágio. Aonde vamos parar? — questionou Marco Aurélio.

A decisão liberou os cultos sob o argumento de que proibição não ocorreria “sequer em estados de defesa e de sítio”. “As questões sanitárias são importantes e devem ser observadas, mas, para tanto, não se pode fazer tábula rasa da Constituição”, afirmou Nunes Marques.

ESPECIALISTAS CONTESTAM

Para o professor de Direito Constitucional Rodrigo Brandão, da Uerj, a decisão de Nunes Marques vai na direção oposta ao que o plenário da Corte havia decidido:

— Decisões pontuais do STF, especialmente quando monocráticas, sobre quais atividades são ou não essenciais geram problemas de coerência do tratamento jurídico da matéria. Não me parece razoável que sejam autorizados cultos presenciais e proibidas atividades econômicas essenciais à subsistência — avalia.

Doutor em Direito Processual e ex-assessor de Fux, Irapuã Santana ressaltou que se trata de uma “questão local”:

— O STF determinou que, para questões de interesse local, os órgãos competentes são os governos estaduais e municipais. Temos evidente invasão à competência do Executivo pelo poder Judiciário e uma decisão monocrática que contraria o colegiado —afirma.

A sobreposição de decisões levou a situações divergentes no país. Em Belo Horizonte, segundo a GloboNews, um padre chegou a interromper uma missa em andamento, enquanto em outras igrejas da cidade as cerimônias presenciais transcorreram normalmente. Já o arcebispo da cidade, Dom Walmor Oliveira de Azevedo, realizou a celebração de Páscoa on-line.

Na Basílica de Aparecida, houve missa presencial, mas com apenas 154 pessoas. Também em São Paulo, com máscaras, fiéis marcaram presença em culto do pastor Valdemiro Santiago, líder da Igreja Mundial do Poder de Deus. Em Curitiba, um drivethru foi organizado no Santuário de Nossa Senhora de Guadalupe. Na Catedral do Rio, a missa também respeitou os protocolos de segurança, como limitação de público a 30% da capacidade, aferição de temperatura na entrada, higienização com álcool em gel, exigência do uso de máscara e distanciamento.