O Estado de S. Paulo, n. 46455, 25/12/2020. Internacional, p. A8

 

Como a China censurou o coronavírus

25/12/2020
 
 

Na madrugada de 7 de fevereiro, os poderosos censores da internet da China sentiram algo profundamente perturbador. Sentiram que estavam perdendo o controle. Espalhava-se rapidamente a notícia da morte por covid-19 do doutor Li Wenliang, que alertou para a existência de uma nova e mortífera epidemia viral e, em resposta, foi ameaçado pela polícia e acusado de espalhar boatos.

As redes sociais foram tomadas pelo pesar e pela fúria. Para o público chinês e estrangeiro, a morte do dr. Li mostrou o terrível custo do instinto do governo chinês de suprimir as informações inconvenientes. A morte de Li em Wuhan desencadeou um gêiser de emoções que ameaçou arrancar as redes sociais do controle do governo.

Mas os censores da China decidiram dobrar a aposta. Alertando para o "desafio sem precedentes" que a morte de Li representava e para o efeito que ela poderia desencadear, as autoridades suprimiram notícias inconvenientes e retomaram o controle da narrativa, segundo diretrizes confidenciais enviadas a funcionários de escritórios locais de propaganda e veículos jornalísticos.

Elas ordenaram aos sites de notícias que não enviassem notificações push alertando para a morte do médico e disseram às plataformas de redes sociais que gradualmente removessem o nome dele dos tópicos mais acessados.

As ordens faziam parte de milhares de diretrizes secretas do governo e outros documentos analisados pelo New York Times e pela ProPublica. Eles expõem detalhadamente o sistema que ajudou as autoridades chinesas a moldar a opinião na internet durante a pandemia.

Em um momento em que as redes sociais aprofundam as divisões sociais nas democracias ocidentais, a China manipula o discurso online para reforçar o consenso do Partido Comunista. Para gerenciar o conteúdo exibido na internet chinesa no começo do ano, as autoridades emitiram comandos rigorosos a respeito do conteúdo e do tom da cobertura jornalística, pagaram diretamente a trolls para que inundassem as redes sociais com comentários favoráveis ao partido e mobilizaram forças de segurança para amordaçar vozes não autorizadas.

Ainda que a China não disfarce o controle da internet, os documentos esclarecem a dimensão dos esforços empreendidos para mantê-lo. São necessários uma imensa burocracia, exércitos de pessoas, tecnologia especializada feita por empresas terceirizadas, o monitoramento constante de veículos jornalísticos digitais e plataformas de redes sociais e muito dinheiro.

Segundo os documentos, os limites da China para as informações sobre a epidemia começaram no início de janeiro, antes mesmo de o novo coronavírus ter sido identificado de maneira definitiva. Quando a infecção começou a se espalhar rapidamente algumas semanas depois, as autoridades reprimiram tudo que mostrasse a resposta da China de maneira "negativa".

Faz meses que os EUA e outros países acusam a China de tentar ocultar a dimensão do surto no seu início. Talvez nunca saibamos se uma maior liberdade no fluxo de informações na China teria evitado que esse surto se transformasse em uma calamidade de saúde global. Mas os documentos indicam que as autoridades chinesas tentaram conduzir a narrativa não apenas para evitar o pânico e desbancar falsos rumores internos. Elas queriam também fazer com que o vírus parecesse menos grave – e as autoridades, mais capazes .

Os documentos incluem mais de 3.200 diretrizes e 1.800 memorandos do órgão regulador da internet no país, a Administração Cibernética da China (CAC). Eles também incluem arquivos internos e programas de computador de uma empresa chinesa,

Urun Big Data Services, que desenvolve o software usado para monitorar os debates na internet e gerenciar exércitos de comentaristas online.

Os documentos foram compartilhados com o Times e a ProPublica por um grupo de hackers. O Times e a ProPublica verificaram a autenticidade de muitos dos documentos, alguns dos quais foram obtidos em separado pelo China Digital Times, um site que acompanha o controle chinês da internet. A CAC e o Urun não responderam aos pedidos de entrevista.

"A China usa o sistema de censura como arma política; ele é refinado, organizado, coordenado e sustentado com recursos do Estado", disse Xiao Qiang, pesquisador e cientista da Faculdade de Informação da Universidade da Califórnia, em Berkeley, e fundador do China Digital Times.

Uma das diretrizes disse que a CAC não deveria simplesmente controlar a mensagem dentro da China, mas também buscar "formas ativas de influenciar a opinião internacional". Funcionários da agência começaram a receber links para artigos relacionados ao vírus que deveriam promover nos agregadores de notícias locais e nas redes sociais. As reportagens online deveriam ressaltar os heroicos esforços dos funcionários de saúde locais enviados a Wuhan, a cidade chinesa onde o vírus foi identificado pela primeira vez, assim como as contribuições vitais dos membros do Partido Comunista.

Funcionários da CAC sinalizaram alguns vídeos mostrando condições reais que deveriam ser apagados. O público não podia ver nada que contradissesse a tranquilizante mensagem do Partido Comunista, segundo a qual o vírus estava sob firme controle.  / NYT, TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

Manipulação

"Não se trata apenas de apagar algo. Eles (o governo chinês) têm também um poderoso aparato para construir uma narrativa e apontá-la contra um alvo em uma operação de ampla escala"

Xiao Qiang

FUNDADOR DO CHINA DIGITAL TIMEs