O Estado de S. Paulo, n. 46449, 19/12/2020. Metrópole, p. A21

 

TJ vai apurar ataque de juiz à Lei Maria da Penha

Paulo Roberto Netto

Fausto Macedo

19/12/2020

 
 

A Corregedoria do Tribunal de Justiça de São Paulo abriu apuração preliminar para investigar um juiz da Vara de Família e Sucessões da capital que teria zombado da Lei Maria da Penha durante uma audiência sobre guarda e visita de filhos. Na sessão, o magistrado, que não teve seu nome revelado pelo TJ, afirma que uma coisa que ele aprendeu na vida era que “ninguém agride ninguém de graça”.

O caso foi revelado no site Papo de Mãe, parceiro do UOL. As imagens divulgadas pelo portal revelam o magistrado desmerecendo a Lei Maria da Penha, voltada para a proteção de mulheres vítimas de violência doméstica. “Vamos devagar com o andor que o santo é de barro”, afirmou o juiz. “Se tem lei Maria da Penha contra a mãe, eu não tô nem aí. Uma coisa eu aprendi na vida de juiz: ninguém agride ninguém de graça.”

O processo está sob sigilo pois uma das partes, a mulher, é vítima do ex-companheiro em um inquérito de violência doméstica. Na audiência, porém, o juiz desmerece o texto e diz que se a mulher continuar a registrar boletins de ocorrência contra o ex-marido poderia ter problemas com a guarda dos filhos pois “ficar fazendo muito B.O. depõe muito contra quem faz”, segundo vídeos exibidos no site.

“Qualquer coisinha vira Lei Maria da Penha. É muito chato também, entende? Depõe muito contra quem… eu já tirei guarda de mãe, e sem o menor constrangimento, que cerceou acesso de pai. Já tirei e posso fazer de novo”, disse o juiz, em outro momento da audiência.

O magistrado também tenta dissuadir a mulher da medida protetiva. “Pois é, quando a cabeça não pensa, o corpo padece. Será que vale a pena levar esse negócio de medida protetiva para frente?”, questiona o juiz.

Em outro momento, ele declara: “Quem batia não me interessa”. E sugere à mulher que volte para o ex-companheiro. “Mãe, se São Pedro se redimiu, talvez o pai possa…”, disse o magistrado. “Ele pode ser um figo podre, mas foi uma escolha sua e você não tem mais 12 anos.”

Para a corregedoria, o caso é grave e aponta para violação da Lei Orgânica da Magistratura e do Código de Ética da categoria. “Ante a aparente gravidade das condutas, a exigir providências urgentes no sentido de obter cópia integral da audiência, determino a instauração, de ofício, por esta Corregedoria Geral de Justiça, de expediente de apuração preliminar”, determinou o corregedor Ricardo Anafe.

Repúdio na OAB. Em nota divulgada ontem à tarde, a Comissão Nacional da Mulher Advogada da OAB criticou a postura do juiz e relembrou outros dois episódios recentes de violência de gênero contra mulheres: a audiência do caso do estupro da influenciadora Mariana Feller e o assédio contra a deputada estadual Isa Penna (PSOL). A manifestação é co-assinada pela Associação Brasileira de Mulheres de Carreiras Jurídicas.

Para as advogadas, os episódios são “uma breve amostra do que cotidianamente ocorre no Brasil”. O terceiro caso (do juiz que desdenha da Lei Maria da Penha), diz a nota, “expressa mais um episódio de violência de gênero em que, por meio de declarações descabidas, o magistrado busca, inclusive, inverter a culpa pela violência, colocando na conta da vítima a responsabilidade pela violência que sofreu, além de fazer deboche da Lei Maria da Penha”.

’Culpa invertida’

“(Caso é) mais um episódio de violência de gênero em que, por declarações descabidas, o magistrado busca inverter a culpa”

NOTA DA COMISSÃO NACIONAL DA MULHER DA OAB