O Estado de São Paulo, n. 46446, 16/12/2020. Metrópole, p. A17

 

Bolsonaro diz que não tomará vacina e cientistas veem desestímulo à população

João Prata

16/12/2020

 

 

  
Presidente defendeu na TV, outra vez, não obrigar a vacinação, mas voltou a dizer que dará 'sinal verde' para qualquer imunizante com registro na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Para especialistas, é cabível até processo por crime de responsabilidade

O presidente Jair Bolsonaro disse ontem que não vai tomar a vacina contra a covid19. Ele já foi diagnosticado e se curou da doença em julho, mas ainda não há evidências científicas robustas sobre o alcance da imunidade após a infecção. Bolsonaro ainda defendeu, outra vez, não obrigar a vacinação de todos. Cientistas veem nas falas desestímulos à vacinação em massa, essencial para conter o vírus, e dizem que não é hora de debater a obrigatoriedade da vacina. Desde o início de março, Bolsonaro nega a gravidade da pandemia, critica o isolamento social e nem sempre usa máscara em eventos públicos.

"Como cidadão é uma coisa e como presidente é outra. Mas como nunca fugi da verdade, digo: não vou tomar a vacina. Se alguém acha que minha vida está em risco, o problema é meu e ponto final", declarou Bolsonaro ao apresentador José Luiz Datena, da TV Band.

A postura é diferente de outros líderes estrangeiros, que têm falado em tomar a vacina para incentivar a sociedade. Para a virologista Giliane de Souza Trindade, da UFMG, o governo parece trabalhar contra a vacina. "Se ele estivesse preocupado em zelar pela saúde, deveria ser o primeiro a dar exemplo. Isso faz muito mal e tem repercussões lá fora." Já o presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, disse que essa e outras posturas do presidente são lamentáveis e afirmou ter "fé" de que Bolsonaro compreenda o papel que a sociedade reservou a ele".

À TV, Bolsonaro ainda prosseguiu. "E outra coisa, Datena, você tomando a vacina, daqui a dois, três ou quatro anos vai ter de tomar de novo, caso contrário pode ser infectado". Cientistas não sabem a duração da imunidade pela vacina. "Temos de respeitar quem não queira tomar. Não pode ser obrigatória", continuou Bolsonaro na TV.

O Supremo Tribunal Federal deve discutir esta semana duas ações sobre vacinação compulsória. Uma delas, do PDT, pede que seja reconhecida a competência de Estados e municípios para determinar a vacinação compulsória. Já outra, do PTB, requer a inconstitucionalidade dessa previsão. Em outubro, o governador João Doria (PSDB) disse que a vacinação seria obrigatória em São Paulo, o que motivou protestos. Sobre a necessidade de obrigar a vacinação, especialistas apontam que o desafio inicial será outro: lidar com a limitação de doses diante da demanda da população mais vulnerável do País – só os grupos de idosos, indígenas e pessoas com comorbidades somam 42 milhões de pessoas, estima o próprio Ministério da Saúde.

Segundo o plano de imunização entregue pelo governo ao STF semana passada, "a interrupção da circulação da covid19 no território nacional depende de uma vacina altamente eficaz sendo administrada em parcela expressiva da população (>70%)". Nos últimos dias, o presidente ainda tem incentivado obrigar que seja assinado um termo de consentimento por quem se vacinar contra a covid, por causa de possíveis efeitos colaterais. A ideia foi criticada por especialistas.

Bolsonaro ainda disse ontem que dará "sinal verde" para qualquer imunizante com registro na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Ele prevê medida provisória que libera R$ 20 bilhões para comprar imunizantes. "Qual vacina? Aquela que passar pelo crivo da Anvisa. Passou, a gente compra, sem problema nenhum."

A postura do governo federal mudou. Em outubro, o ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, prometeu a governadores comprar 46 milhões de doses da Coronavac, desenvolvida pelo laboratório Sinovac e pelo Instituto Butantã, ligado ao governo paulista, de João Doria (PSDB). Pazuello foi desautorizado no dia seguinte por Bolsonaro, que alegou falta de credibilidade do produto, por ser chinês. E também celebrou nas redes socais, em novembro, a interrupção nos testes da Coronavac, após a morte de um voluntário.

Responsabilização. Para especialistas, é cabível responsabilização por essas posturas. "Existe uma intencionalidade, que é claríssima do governo federal, de disseminar a doença. Porque é a crença na ideia de que, se ela se disseminar rápido, terminará rápido também", afirma Deisy Ventura, professora de Ética da Faculdade de Saúde Pública da USP. "Há desrespeito às leis, às normas jurídicas adotadas, com atos de obstrução do trabalho dos governadores e prefeitos e, principalmente, a disseminação de informações falsas, como a de que existe tratamento precoce da covid."

"Um dos requisitos para crime de responsabilidade, impeachment, é violar direito social. Uma atitude como a dele é a de violar o direito à saúde da população, porque está atrapalhando as medidas que deveriam ser tomadas para garantir o direito a saúde", diz o médico e advogado sanitarista Daniel Dourado.

PARA LEMBRAR

Presidentes apoiam vacina

A vacina tem encontrado apoio nos chefes de Estado, que anunciaram recentemente que tomarão o imunizante publicamente como forma de incentivar a campanha. Um deles é o primeiro-ministro do Reino Unido, Boris Johnson, que cogita receber a dose em rede nacional de televisão. Ele pondera, no entanto, que não vai furar a fila do plano traçado pelo governo, que prioriza os idosos e profissionais de saúde.

Repercutiram, este mês, as declarações dos ex-presidentes americanos Barack Obama, George W. Bush e Bill Clinton, que disseram que também tomariam a vacina publicamente. A vacinação encontra apoio, ainda, do primeiro-ministro do Canadá, Justin Trudeau, e do presidente argentino, Alberto Fernández.

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Governo fala em termo de consentimento para se vacinar

Emilly Benhke

Camilla Turtelli

Anne Warth

Renato Vieira

João Prata

16/12/2020

 

   

Com a estratégia, a União se isentaria de responsabilidade sobre eventuais efeitos colaterais de imunizantes

 

O governo federal quer criar termo de consentimento para a aplicação da vacina contra a covid-19 no Brasil. Com a estratégia, defendida pelo presidente Jair Bolsonaro, a União se isentará de responsabilidade sobre eventuais efeitos colaterais da vacina. Mas o presidente da Câmara, deputado Rodrigo Maia (DEM-RJ), disse que não vai acatar a medida.

A ideia era incluir a previsão do termo de consentimento no relatório da Medida Provisória que autoriza o ingresso do Brasil no Covax Facility, consórcio para compra de imunizantes liderado pela Organização Mundial da Saúde (OMS). A informação foi anunciada ontem pelo relator do texto, deputado Geninho Zuliani (DEM-SP), que se reuniu com Bolsonaro.

"O laboratório da Pfizer (que negocia 70 milhões de doses de vacina com o Brasil), no contrato ofertado ao governo federal, tem uma cláusula que tira a responsabilidade do laboratório para eventuais efeitos colaterais no futuro. O presidente quer repassar isso de forma segura, clara, transparente a todos que receberão a vacina. O termo jurídico é 'consentimento informado' ", disse Zuliani.

O governo ainda vai produzir um estudo jurídico sobre o tema. "Isso agora é competência do governo, de poder dialogar com a sociedade, com todos os ministérios, e criar esse termo de consentimento (...) para que todos possam tomar os imunizantes", disse o deputado.

Em conversa com apoiadores no Palácio da Alvorada anteontem, Bolsonaro já havia dito que quem quisesse tomar a vacina teria de assinar esse termo. "Tem gente que quer tomar, então toma. A responsabilidade é sua. Para quem está bem fisicamente, não tem de ter muita preocupação. A preocupação é o idoso, quem tem doença."

Maia rebateu. "Se o governo tiver interesse, apresente a emenda por um deputado, faça destaque e tente ganhar no plenário. Não pode o relator assumir a responsabilidade sobre um tema que não temos convencimento de que é o caminho correto, para aprovação dentro da medida provisória."

Repercussão. Para o médico e advogado sanitarista Daniel Dourado, a ideia é inconstitucional. "Os brasileiros têm o direito à saúde garantido pela Constituição, como direito social. O pressuposto da vacina é que não é experimental. A Anvisa ou vai ter de registrar ou vai ter de dar a autorização para liberação da vacina. Por isso não tem cabimento, não faz sentido esse termo de autorização que o presidente menciona", diz.

Especialistas dizem desconhecer a praxe de um termo de responsabilidade para vacinas, o que só ocorre quando passam por fase de testes. Se elas estiverem aprovadas, quem responde por ela é o órgão regulador e o governo. "Muito provavelmente vai ter um temor das pessoas de tomar a vacina. O governo não pode transferir a responsabilidade", afirma Celso Granato, infectologista e diretor clínico dofleury.