O Estado de São Paulo, n.46431 , 01/12/2020. Internacional, p.A8

 

Por Videoconferência, Bolsonaro e Fernández conversam pela primeira vez

Luciana Rosa

Tânia Monteiro

Daniel Waterman

01/12/2020

 

 

Os presidentes Jair Bolsonaro, do Brasil, e Alberto Fernández, da Argentina, se falaram ontem pela primeira vez desde que o argentino foi eleito, em outubro do ano passado. A conversa, feita por videoconferência, foi anunciada pela Casa Rosada, em nota divulgada no domingo, e não constava na agenda do brasileiro, que tem um histórico de atritos com Fernández.

Bolsonaro falou do Palácio da Alvorada, acompanhado do chanceler, Ernesto Araújo, e do secretário de Assuntos Estratégicos, Flávio Rocha. Quem também participou da conversa, que durou cerca de 45 minutos, foi o ex-presidente José Sarney – o pretexto da ligação foi a celebração dos 35 anos do encontro histórico entre Sarney e Raúl Alfonsín, então presidente da Argentina, em Foz do Iguaçu, que marcou a integração entre os dois países Bolsonaro iniciou a conversa prestando condolências pela morte de Diego Armando Maradona, no dia 25, a quem tratou como "grande atleta". O craque, que era próximo de figuras de esquerda, como o cubano Fidel Castro e o venezuelano Hugo Chávez, é considerado o maior ídolo do esporte argentino.

A reunião pôs fim a um longo período de afastamento entre os dois países, iniciado com a eleição do argentino. A relação ficou estremecida por dois motivos: Bolsonaro apoiou a reeleição de Maurício Macri, derrotado nas urnas, e pela visita que Fernández fez ao ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, ainda durante a campanha. Na ocasião, o petista ainda estava preso em Curitiba e o gesto foi considerado uma afronta pelo presidente brasileiro.

Na conversa de ontem, Fernández defendeu deixar as diferenças de lado e trabalhar com o Brasil em um acordo ambiental. "Seguimos avançando em matéria de segurança e Forças Armadas, e temos de trabalhar juntos no tema ambiental, que é um assunto que nos preocupa muito. Devemos fazer um acordo de preservação", afirmou o argentino – o meio ambiente é um ponto-chave para conseguir concretizar um tratado de livre-comércio entre o Mercosul e União Europeia.

O pacto, que havia avançado no governo Bolsonaro, sofreu importantes derrotas em Parlamentos de países europeus e parece ter naufragado de vez depois da resposta do governo brasileiro ao desmatamento na Amazônia e no Pantanal. Recentemente, ele acusou outros países pela extração ilegal de madeira no Brasil e rejeitou o rótulo de "inimigo do meio ambiente".

Auxiliares do Palácio do Planalto afirmaram que o balanço da conversa foi positivo e, mesmo quando a questão ambiental foi abordada, o clima amistoso permaneceu. Bolsonaro costuma reagir a cobranças de outros países e, recentemente, sugeriu até mesmo recorrer a "pólvora" após o presidente eleito dos EUA, Joe Biden, sugerir retaliações caso não haja medidas efetivas de proteção à Floresta Amazônica.

O presidente brasileiro reforçou que "o Mercosul é o principal pilar de integração" regional, aproveitando para pedir a criação de "mecanismos mais ágeis e menos burocráticos" no bloco. Bolsonaro expressou ainda interesse de avançar em áreas de interesse comum, "especialmente o turismo".

Para Daniel Scioli, embaixador da Argentina no Brasil, a conversa foi o ponto de partida para uma nova fase da relação bilateral. "O tema principal foi deixar para trás os desencontros e olhar para o futuro, fortalecendo a integração, que seja uma integração energética, de infraestrutura, da indústria militar, do setor agroalimentar", disse Scioli ao Estadão. "Foi uma agenda positiva e muito inspiradora." Sobre os próximos passos, ele confirmou que "houve convites recíprocos dos presidentes para reunir-se em breve e fortalecer essa associação estratégica".

PARA LEMBRAR

O nascimento de uma aliança

A relação entre Brasil e Argentina sempre foi conturbada. Na maior parte da história, os vizinhos se viram com desconfiança, uma animosidade que vinha desde o período colonial e foi acirrada durante as ditaduras militares, nos anos 60. A aproximação só ocorreu nos anos 70, com a assinatura do Acordo Tripartite, de 1979, entre Brasil, Argentina e Paraguai, que pôs fim à maior crise diplomática do pós-guerra e regulou o uso das usinas de Itaipu e Yacyretá. A redemocratização consolidou de vez a aproximação, com o encontro entre os presidentes José Sarney, do Brasil, e Raúl Alfonsín, da Argentina, em Foz do Iguaçu, no dia 30 de novembro de 1985. A reunião rendeu a Ata de Iguaçu, que criou uma comissão mista para promover a integração econômica e comercial entre os dois vizinhos, a base para o Mercosul. Foi para celebrar a aliança que, em 2018, se estabeleceu o Dia da Amizade Argentino-brasileiro.

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Diálogo ocorreu após intensa negociação diplomática

Luciana Rosa

01/12/2020

 

 

A conversa de ontem entre Jair Bolsonaro e Alberto Fernández só foi possível graças a uma intensa negociação iniciada pela Casa Rosada. O embaixador argentino em Brasília, Daniel Scioli, que permaneceu na Argentina até agosto, período mais crítico da pandemia, foi peça-chave no processo. Antes, a coordenação entre os dois passava pelos líderes da Câmara dos Deputado de ambos os países, Rodrigo Maia e Sergio Massa.

Eduardo Bolsonaro, que é presidente da Comissão de Assuntos Exteriores da Câmara dos Deputados, jantou com Scioli no dia 19, na casa do secretário de Assuntos Estratégicos da Presidência da República, almirante Flávio Rocha.

O embaixador argentino confirmou que as negociações tiveram início ali. "Eu transmiti a eles que existia a disposição de Alberto (Fernández) em concretizar um encontro – e me disseram também haver uma predisposição de Bolsonaro. Pelas características deste momento, optou-se pela alternativa virtual", disse Scioli ao Estadão.

O ministro brasileiro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, também esteve presente no primeiro encontro. Com exceção de Eduardo, todos participaram da conversa de ontem – que também contou com a presença do chanceler argentino, Felipe Solá. Um fator que poderia ter ajudado a quebrar o gelo é o afastamento de Fernández, visto como um líder de centroesquerda, de sua vice-presidente, Cristina Kirchner, que representa uma ala mais radical do peronismo.

Durante a campanha presidencial, Fernández visitou o expresidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva, que estava preso em Curitiba, além de tê-lo citado no discurso da vitória. A relação com Bolsonaro, que já não prometia ser fácil em função das diferenças ideológicas, ficou ainda mais complicada.

Bolsonaro respondeu pedindo respeito à soberania nacional. À cerimônia de posse de Fernández, o brasileiro enviou o vice-presidente, Hamilton Mourão. A ausência de um presidente brasileiro na posse do líder argentino não ocorria havia 30 anos.

Desde então, as críticas de Bolsonaro ao governo argentino foram recorrentes, sempre comparando o país com a Venezuela. Em maio, o brasileiro pediu à imprensa que comparasse os números de covid-19 nos dois países de forma proporcional à população – e não em números absolutos. Na ocasião, o Brasil registrava 13.240 mortes, enquanto o país vizinho havia confirmado apenas 329, de acordo com dados compilados pela Universidade Johns Hopkins. Pelos números atuais, a taxa de mortes por 1 milhão de habitantes na Argentina é de 854 – a 8.ª pior no mundo – e a do Brasil é de 812 – a 13.ª em todo o planeta.

Recentemente, porém, os dois países iniciaram uma cooperação pela qual o Brasil permitiu a exportação para a Argentina de Midazolam, um insumo fundamental para o tratamento de pacientes com coronavírus em estado grave.

Segundo o comunicado argentino, o encontro de ontem seria fruto do diálogo e do trabalho sustentado de coordenação política que os dois países vêm desenvolvendo nos últimos meses, que resultou no crescimento do comércio bilateral, a ponto do Brasil mais uma vez se posicionar como o principal parceiro comercial da Argentina.

De acordo com dados do Instituto Nacional de Estatísticas e Censos (Indec), órgão vinculado ao Ministério da Economia e Finanças Públicas da Argentina, em agosto, as exportações brasileiras somaram US$ 777 milhões, ante US$ 604 milhões exportados pelos chineses.

Segundo a Fundação Getúlio Vargas (FGV), em outubro, o superávit da balança comercial em favor do Brasil foi de US$ 5,5 bilhões, o que elevou o saldo positivo para US$ 47,4 bilhões no acumulado dos dez primeiros meses do ano.