Valor Econômico, n.5219, 31/03/2021. Política, p.A10

 

Cresce temor de politização das Forças Armadas

Andrea Jubé

Fabio Murakawa

Matheus Schuch

31/03/2021

 

 

Mensagem alusiva ao 31 de março, assinada por Braga Netto, afirma que golpe “pacificou” o país

Num momento de fragilidade do governo diante do agravamento da pandemia, da deterioração econômica e da perda de popularidade, o gesto do presidente Jair Bolsonaro de substituir, em um lance único, o ministro da Defesa e os três comandantes militares eleva a tensão quanto ao risco de politização das Forças Armadas, e até mesmo de um decreto de um “estado de sítio”.

 

 

“Quando se fala em estado de sítio, pessoal fala que sou eu. Eu não posso decretar, quem decreta é o parlamento”, rechaçou o presidente. “Eu jogo dentro da Constituição”, comprometeu-se.

Sob pressão do Congresso, Bolsonaro cedeu espaços aos aliados, mas ao interferir na cúpula militar, mostrou que tentará se blindar politicamente cercando-se de quadros militares de lealdade inquestionável, e dispostos a gestos mais claros de alinhamento ao governo.

Auxiliares de Bolsonaro lembram que, pela Constituição Federal, o presidente é o “comandante-em-chefe das Forças Armadas”, e nos últimos tempos, ressentia-se de que nem sempre vinha sendo tratado com o respeito hierárquico devido.

Segundo uma fonte militar que acompanhou de perto esses fatos, o presidente, em alguns momentos, “sentia que ainda o tratavam como capitão”.

Bolsonaro avaliava que, em especial, a ausência do comandante do Exército em vários eventos públicos esvaziava o seu discurso. Segundo uma fonte palaciana, o presidente irritou-se com o não comparecimento do comandante do Exército, até mesmo, a eventos militares previstos na agenda presidencial. Mais que um desprestígio, Bolsonaro entendeu que a ausência de Pujol implicava desrespeito até mesmo à hierarquia militar.

Auxiliares de Bolsonaro nas alas política e militar descartam, entretanto, a politização dos quartéis, ou que as mudanças na cúpula militar evoluam para medidas extremas. O ex-ministro da Defesa Fernando Azevedo e Silva, entretanto, registrou em sua nota de saída do cargo que sempre defendeu que as Forças agissem como “instituições de Estado”, e não de um governo determinado. Ontem, em nota oficial de despedida, o comandante da Aeronáutica afirmou que desempenhou sua missão “balizada pelos inarredáveis preceitos constitucionais”.

A mensagem em alusão ao golpe militar de 1964, que completa hoje 57 anos, assinada pelo novo ministro da Defesa, general da reserva Walter Braga Netto, acena para uma gestão mais sintonizada com a retórica presidencial de que as forças militares estão ao lado do governo para proteger a população.

“O cenário geopolítico atual apresenta novos desafios, como questões ambientais, ameaças cibernéticas, segurança alimentar e pandemias. As Forças Armadas estão presentes, na linha de frente, protegendo a população”, diz a ordem do dia divulgada ontem.

Uma das divergências de Bolsonaro com o ex-ministro da Defesa Fernando Azevedo, e com o ex-comandante do Exército Edson Leal Pujol era a presença ostensiva dos militares nos eventos de governo. Enquanto Bolsonaro se irritava com o distanciamento de Azevedo e Pujol de suas agendas, ambos preferiam uma postura de discrição.

No dia 21, quando comemorou 66 anos, e repetiu as críticas às medidas dos governadores de isolamento social, Bolsonaro voltou a afirmar: “Contem com as Forças Armadas pela democracia e pela liberdade.” Como representante dos militares, estava apenas o ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), general Augusto Heleno.

Na mesma “ordem do dia” militar, Braga Netto diz que os militares “acabaram assumindo a responsabilidade de pacificar o país, enfrentando os desgastes para reorganizá-lo e garantir as liberdades democráticas que hoje desfrutamos", em uma ação que resultou no “movimento de 31 de março de 1964”.

O ministro defende que a Lei da Anistia, aprovada em 1979, “consolidou um amplo pacto de pacificação a partir das convergências próprias da democracia”. Acrescenta que ocorreu uma “transição sólida, enriquecida com a maturidade do aprendizado coletivo”, e “assim devem ser compreendidos e celebrados os acontecimentos daquele 31 de março”.

A saída em conjunto dos três atuais comandantes das forças - do Exército, Edson Pujol; da Aeronáutica, tenente-brigadeiro do Ar Antonio Carlos Bermudez; e da Marinha, almirante de Esquadra Ilques Barbosa Junior - era esperada porque os três eram diretamente ligados ao ex-ministro Fernando Azevedo e Silva.

Depois da frustração com Pujol, Bolsonaro quer escolher a dedo o novo comandante da força terrestre. Ele agora quer nomear alguém que estará ao seu lado nos eventos públicos, com a deferência devida ao “comandante-em-chefe”, e para que não remanesça dúvida entre seus apoiadores de que a força verde-oliva está alinhada ao governo.

Ontem, o vice-presidente Hamilton Mourão, que teria conversado com Azevedo e Pujol teria dito a ambos que tem um pensamento alinhado com eles sobre a finalidade das Forças Armadas, ou seja, seria a favor de que as Forças sejam uma força do Estado.

Os substitutos serão escolhidos entre os oficiais mais antigos, mantendo a tradição militar, em listas tríplices enviadas por cada força à Presidência da República.

Bolsonaro recuou da intenção de nomear o comandante militar do Nordeste, general Marco Antônio Freire Gomes, para o lugar de Pujol porque ele não atende ao critério da antiguidade.

No entanto, os três generais mais antigos são muito próximos de Pujol e de Fernando Azevedo. São eles o general José Luiz Freitas, comandante de Operações Terrestres; general Marcos Antônio Amaro, comandante do Estado-Maior; e general Paulo Sérgio, chefe do Departamento Pessoal do Exército.

Na Marinha, o nome mais provável é o do Almirante Almir Garnier, secretário geral do Ministério da Defesa. Na Aeronáutica, um dos três cotados é o brigadeiro Baptista Júnior.

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Congresso reage e oposição decide apresentar novo pedido de impeachment

Vandson Lima

Renan Truffi

31/03/2021

 

 

Oposição deve pedir afastamento do presidente por cooptação das Forças Armadas e tenta convocar o ex-ministro da Defesa Fernando Azevedo e Silva em audiência

Presidente do Senado e do Congresso Nacional, Rodrigo Pacheco (DEM-MG) fez ontem um pronunciamento no qual afirmou que o Poder Legislativo está vigilante a possíveis ameaças à democracia e que o foco deveria ser a junção de esforços para acelerar a vacinação da população ante à pandemia do coronavírus. “Estamos absolutamente vigilantes a todo instante. Não permitiremos retrocesso. Temos só dois caminhos: a união ou o caos”.

A profunda crise desencadeada após os comandantes do Exército, da Marinha e da Aeronáutica renunciarem aos cargos não passará em branco no parlamento. A oposição decidiu elaborar um novo pedido de impeachment do presidente Jair Bolsonaro, que será apresentado na Câmara dos Deputados hoje. O Valor apurou que o argumento principal será de que Bolsonaro tenta a “cooptação das Forças Armadas”. O pedido de impeachment será assinado pelos líderes da Oposição no Senado, Randolfe Rodrigues (Rede-AP), da Minoria no Senado, Jean Paul Prates (PT-RN), da Minoria na Câmara, Marcelo Freixo (PSOL-RJ), da Oposição na Câmara, Alessandro Molon (PSB-RJ) e, por fim, da Minoria no Congresso, Arlindo Chinaglia (PT-SP).

Outra medida será tentar convocar uma audiência pública com o general Fernando Azevedo e Silva, agora ex-ministro da Defesa, para falar sobre eventuais ilegalidades cometidas por Bolsonaro na tentativa de fazer com que comandantes se alinhem ao seu governo, com declarações públicas de apoio. Azevedo, por exemplo, insistia em manter o trabalho de forma institucional, como destacou em sua nota de despedida, em que escreveu: “preservei as Forças Armadas como instituições de Estado”.

Pacheco, que é de um partido da base do governo, adotou linha diversa da oposição. Disse não ver ameaça de rompimento à ordem democrática, mas que está alerta. “Esta Presidência acredita que não há nem a mínima iminência de qualquer risco de rompimento. Mas se houver, cabe a esta Presidência do Senado reagir”.

O presidente do Senado também criticou a apresentação na Câmara, pelo ex-líder do governo Vitor Hugo (PSL-GO), de um requerimento de urgência para a votação de um projeto de lei que, se aprovado, daria a Bolsonaro o poder de acionar, durante a pandemia, o dispositivo da chamada “mobilização nacional”. “[Sobre] o episódio recente, da discutida ameaça ao estado democrático de direito: O Senado é o guardião da democracia. A Constituição será respeitada. Temos que conter qualquer iniciativa legislativa que contrarie a Constituição. Não permitiremos transigir ou flertar com qualquer ato que vise o retrocesso ao Estado democrático de Direito”, disse.

Pacheco tem sido pressionado por senadores a adotar postura mais crítica a atitudes do governo federal que criam tensão entre os poderes e confrontam os esforços de combate à pandemia - com pedidos para que aprove a instalação da CPI da pandemia. “Tenho absoluto senso de responsabilidade. O foco é o enfrentamento da pandemia e não admitirei desvio de foco, por absolutamente ninguém que queira confundir a Câmara e o Senado”, apontou. Sobre a debandada no comando das Forças Armadas, afirmou apenas: “As Forças Armadas não promovem a guerra, mas asseguram a paz”.

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Políticos temem radicalização de Bolsonaro e veem sinais de ruptura

Cristiane Agostine

Lilian Venturini

31/03/2021

 

 

Demissão do ministro da Defesa e a troca dos comandantes das Forças Armadas foi vista até por aliados de Bolsonaro como ameaça a um eventual golpe

Lideranças políticas e até mesmo aliados de Jair Bolsonaro têm demonstrado preocupação com os sinais dados pelo presidente da República de que poderá radicalizar e colocar em risco a democracia. A demissão do ministro da Defesa e a troca dos comandantes do Exército, Marinha e Aeronáutica foi vista como uma tentativa de controlar as Forças Armadas, com a ameaça de um eventual golpe de Estado.

Aliado de Bolsonaro, o presidente nacional do DEM, ACM Neto, disse que a troca no Ministério da Defesa e nas Forças Armadas “inquietam o país”. “É essencial para a democracia que as Forças Armadas atuem sempre com independência, e estejam a serviço do Estado brasileiro, jamais a serviço dos interesses de quem quer que seja”, afirmou. “Precisamos do máximo de responsabilidade de todas as autoridades públicas. A democracia é um valor inegociável.” 

O MDB lamentou a troca nas Forças Armadas, em meio ao cenário caótico enfrentado pelo país, com mais de 3,7 mil mortos em 24h por covid-19, e disse que a Constituição “impõe direitos e deveres” ao presidente. “Qualquer medida que afronte o constitucional deve ser entendida como desrespeito ao povo brasileiro e isso não pode ser tolerado em um regime democrático’, afirmou o presidente nacional do partido, deputado Baleia Rossi (SP). 

Ex-aliado de Bolsonaro, o vice-presidente nacional do PSL, Junior Bozzella disse que está em curso uma tentativa de “golpe”. “Sem saída diante do caos que a sua incompetência causou ao país, e ciente dos crimes que cometeu, Bolsonaro apela pra uma última tentativa de se manter, nem que seja a força, no poder: golpe”, afirmou. “A troca do comando da Defesa deixou claro que o presidente reconhece o fracasso do seu governo e que não hesitará em passar por cima de quem quer que seja, inclusive, da Constituição e do povo”, disse Bozzela.

Ex-presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ) afirmou que Bolsonaro é “autoritário” e se parece om os venezuelanos Hugo Chávez e Nicolás Maduro.

Adversário do presidente, o governador de São Paulo, João Doria (PSDB), disse que o ex-ministro da Defesa Fernando Azevedo e Silva e os ex-comandantes das Forças Armadas se recusaram a aceitar “inclinações autoritárias”. “O país resistirá a qualquer ato que comprometa o Estado Democrático de Direito. As Forças Armadas são instituições de Estado, não de governo.” O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso também demonstrou temor. “Espero que as FFAA [Forças Armadas] se mantenham fiéis à Constituição.” 

Ex-apoiador do presidente, o deputado Kim Kataguiri (DEM-SP) chamou a atenção para o projeto defendido pelo líder do PSL na Câmara, Vitor Hugo (GO), que dá poder ao presidente para decretar Mobilização Nacional na pandemia. Com isso, Bolsonaro poderia mobilizar militares, inclusive policiais, para ações que ele determinar. “Isso significa poder absoluto ao presidente”, afirmou. “O golpe está em curso.”

Os opositores ao governo destacaram o temor de uma ação autoritária. Para o deputado Marcelo Freixo (Psol-RJ), as demissões e a incitação a motins policiais “são os atestados da radicalização golpista de Bolsonaro”. “O único remédio para parar esses crimes contra a democracia é o impeachment.” Dirigente nacional do PT, o deputado Paulo Teixeira (SP) disse que o país não permitirá um golpe e também criticou o projeto de Mobilização Nacional. “Só se for por cima dos nossos cadáveres.”

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"Foi uma falta de consideração inomivável com as FAs"

Maria Cristina Fernandes

31/03/2021

 

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Para o general Santos Cruz, instituição não pode virar instrumento de intimidação política

Ex-ministro da Secretaria de Governo e primeiro militar a ser defenestrado do Palácio do Planalto, o general Carlos Alberto dos Santos Cruz foi ponderado ao tomar conhecimento, na segunda-feira, da troca do general Fernando Azevedo e Silva pelo novo ministro da Defesa, general Walter Braga Neto. Ontem, ao saber da substituição dos três comandantes do Exército (Edson Leal Pujol), Marinha (Ilques Barbosa) e Aeronáutica (Antonio Bermudez), Santos Cruz subiu o tom. Não se trata mais de uma decisão política de um presidente da República mas da interferência direta na instituição militar: “Tirar os três comandantes de Força desta maneira é de uma falta de consideração inominável”.

Apesar de passar mais tempo no sítio que tem nos arredores de Brasília do que no Plano Piloto, Santos Cruz ainda frequenta os círculos de militares da ativa e é companheiro de montaria no 1º Regimento da Cavalaria de Guardas do comandante do Exército demitido ontem, Edson Leal Pujol.

A seguir, os principais pontos da entrevista, concedida na tarde de ontem, por telefone, ao Valor:

Valor: Como o senhor explica a substituição inédita dos três comandantes das Forças Armadas de uma só tacada?

Carlos Alberto dos Santos Cruz: Uma reforma ministerial pode acontecer em qualquer governo. O ministro da Defesa pode ser trocado numa reforma como esta, mas os comandantes não. São pessoas que vêm de dentro da instituição, que passaram por um processo de avaliação e foram escolhidos como os melhores entre seus pares. Então tirar os três foi uma falta de consideração inominável com a função militar, com o Exército, a Marinha e a Aeronáutica. Ele [o presidente Jair Bolsonaro] não podia ter feito isso. Não pode ameaçar as Forças Armadas. As Forças Armadas não podem se transformar num instrumento de intimidação política.

Valor: Qual é a consequência prática desta demissão coletiva?

Santos Cruz: A união das Forças Armadas para chamar atenção dos seus valores, a coesão, a hierarquia e a disciplina. Em todos os níveis e no repúdio à subversão da ordem.

Valor: O ministro da Defesa é o elo entre o presidente e os comandantes, mas essa substituição não corroeu a relação de confiança na cadeia de comando?

Santos Cruz: A relação entre os futuros comandantes e o novo ministro vai depender de sua capacidade de liderança. O pessoal que vai assumir tem a mesma cultura institucional de quem acabou de sair. Eles vão honrar a farda. Uma coisa é ser ministro da Defesa, que é um cargo político. A outra é ocupar o comando de uma força e ter uma destinação institucional.

Valor: Mas como essa troca se refletirá na relação com o presidente que é o comandante-em-chefe?

Santos Cruz: O líder maior é o comandante de cada Força. Ele [o presidente] não é o comandante da rotina das Forças, não pode querer arrastar as Forças Armadas para a rotina da política. Ele só a comanda em situações excepcionais. Sempre foi assim. E os comandantes lhe devem respeito funcional e cerimonial, que não está sendo correspondido.

Valor: Uma convocação para intervenção em Estados que enfrentem motins policiais, por exemplo, não é uma situação excepcional?

Santos Cruz: Tem de haver um quadro legal que justifique uma medida como esta. Não pode ser uma crise artificial criada dentro da cabeça dele. Não é isso que a lei prevê. Tem que ter uma realidade estampada e bem justificada. Não é imaginar uma situação e sair convocando as Forças Armadas.

Valor: Há um projeto de lei, apresentado pelo líder do PSL e já com assinaturas para a urgência, que permite a decretação de um estado de “mobilização nacional” e prevê, entre outras coisas, a intervenção em atividades produtivas e a convocação de civis e militares. Isso não se sobrepõe à função constitucional das Forças Armadas?

Santos Cruz: Se é um projeto de lei o Congresso vai ter que se manifestar e se responsabilizar pela aprovação.

Valor: O que o senhor quer dizer é que se o Congresso aprovar um projeto do gênero, a convocação das Forças Armadas é uma responsabilidade a ser dividida entre os militares e o Congresso?

Santos Cruz: A responsabilidade é dele, do presidente da República. Pegamos a mania de não responsabilizar quem de fato é o responsável por tudo. A responsabilidade é dele que é a autoridade máxima. Para fazer uma convocação ele terá que assumir as responsabilidades desta decisão, que são puramente políticas. E é ele quem responde por elas. Uma medida excepcional tem que ter aceitação da sociedade e ser bem justificada. Não se pode banalizar o emprego das Forças Armadas.

Valor: Mas o senhor acha que esse temor de responsabilização inibe o presidente?

Santos Cruz: Se uma medida não se encaixar na Constituição, não estiver prevista na Carta, não pode ser usada. Não se pode raciocinar com convocação das Forças Armadas fora do ambiente legal.