Valor Econômico, n.5218, 30/03/2021. Brasil, p.A4

 

Queiroga se diz contrário a “lockdown nacional”

Marcelo Ribeiro

Matheus Schuch

Vandson Lima

30/03/2021

 

 

Para ministro da saúde, regras rígidas decorrem de falência na adoção de medidas de prevenção

Um dia antes de completar uma semana no cargo, o ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, afirmou ontem, em entrevista exclusiva ao Valor, que trabalhará contra um “lockdown” nacional. O cardiologista admitiu, porém, que regras mais rígidas de circulação decorreram da falência de ações de prevenção ao avanço da pandemia pelo país. Uma das medidas defendidas por ele, o uso de máscaras de proteção, passou a fazer parte da rotina do presidente Jair Bolsonaro de forma mais frequente apenas nas últimas semanas. No primeiro ano da crise sanitária, o chefe do Poder Executivo promoveu aglomerações e apareceu publicamente sem o item de proteção. A postura ainda é adotada hoje, mas com menor frequência.

“Regras rígidas de circulação de pessoas decorrem da falência de ações como uso de máscaras, higiene das mãos, testagem e isolamento de casos confirmados e contactantes. Trabalharemos para que não ocorra lockdown, com uma grande campanha de mobilização nacional”, disse Queiroga, ao ser questionado se o exemplo de Araraquara (SP) não deveria ser nacionalizado.

A cidade viu os números de mortos despencarem por Covid-19 - o índice chegou a zerar no final de semana - após ser o primeiro município do estado de São Paulo a restringir a circulação de pessoas.

Para o substituto do general Eduardo Pazuello, as medidas restritivas devem ser estabelecidas considerando as questões locais de cada região.

Confiante de que o país “atingirá sem problemas” a meta de vacinar 1 milhão de pessoas por dia em abril, o ministro atribui os recordes de mortes pelo vírus - o país superou na semana passada a marca de 3 mil mortos em apenas 24 horas - às novas variantes, “à inobservância de medidas de bloqueios da doença, como o uso de máscaras” e “à elevada mortalidade hospitalar”.

Indagado sobre qual será a próxima meta do governo federal para o número de vacinados por dia quando a marca de 1 milhão de imunizados por dia for alcançada, Queiroga afirmou que isso depende da quantidade de vacinas disponíveis.

“Essa questão de estabelecer metas que ninguém sabe ao certo e depois projetar o dobrar não é prática do governo. Vamos anunciar em breve quais são as metas, as quais decorrem da disponibilidade de vacinas”, disse.

Em audiência no Senado, Queiroga disse ontem que o “teto” da capacidade do sistema público de saúde em aplicar vacina é de 2,4 milhões de doses por dia.

“Teto é 2,4 milhões de brasileiros vacinados por dia. Semana passada vacinávamos 300 mil brasileiros por dia. Agora já superamos mais de 900 mil vacinados por dia. Não é questão logística. É de disponibilidade de vacinas. O Brasil já providenciou 535 milhões de doses de vacinas, principalmente via Butantan e Fiocruz. Problema imediato é vacina nos três meses que se seguem”, afirmou o ministro.

O titular do Ministério da Saúde confirmou a criação de uma secretaria especial de enfrentamento ao coronavírus, que será composta por integrantes de entidades de classe e especialistas. “Todos os dados epidemiológicos estarão disponíveis 24h por dia. Vamos acompanhar de perto a campanha de vacinação contra covid-19 e publicizar as ações de maneira muito clara”, finalizou.

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Ministro encontra 'terra arrasada' após 'fuga de cérebros' na Saúde

Fabio Murakawa

30/03/2021

 

 

Para técnicos ouvidos pelo Valor, maior desafio de Queiroga é fazer com que o ministério siga mais a ciência do que o presidente Bolsonaro

Recém-empossado, Marcelo Queiroga terá a missão de reconstruir o Ministério da Saúde e levantar o moral dos técnicos da pasta no pior momento da pandemia. Servidores ouvidos pelo Valor sob a condição de anonimato dizem que o novo ministro assume em um cenário de “terra arrasada” e que o principal adversário para grandes mudanças de rumo é o presidente Jair Bolsonaro, o que torna a tarefa ainda mais difícil.

Militarizado na gestão do general Eduardo Pazuello, o ministério sofreu no último ano um êxodo de pessoas altamente qualificadas, que deram lugar a militares ou médicos alinhados ideologicamente a Bolsonaro.

Os que ficaram têm medo de agir e propor soluções para a pandemia, dado o histórico de retaliações quando suas propostas estão em desalinho com o presidente.

Queiroga sinalizou um ministério técnico e exonerou o secretário-executivo Elcio Franco, coronel. Escolheu para o posto Rodrigo Castro, servidor de carreira do Ministério da Economia e que atuava como secretário-executivo adjunto no Ministério da Infraestrutura.

O ministro designou ainda o traumatologista Sérgio Okane como Secretário de Atenção Especializada (SAES), por onde passam verbas para leitos e que faz a coordenação entre o SUS e a rede privada. Ele também substitui um coronel, Luiz Otávio Franco Duarte.

Outro anúncio importante foi a criação de uma secretaria especial para o combate à Covid. Segundo técnicos, essa secretaria terá função semelhante à do Centro de Operações de Emergência (COE). Trata-se de estrutura montada em casos de emergência sanitária e que teve grande papel no combate às epidemias de zika e H1N1. 

Servidores relatam medo de propor saídas para a pandemia por causa do histórico de perseguições na pasta

O órgão foi acionado no ano passado, mas acabou esvaziado por Pazuello. Passou da Secretaria de Vigilância em Saúde (SVS) para a secretaria-executiva, ou seja, para o comando direto do general. Com os técnicos relegados a um papel secundário, a tomada de decisões ficava restrita ao núcleo mais próximo do ministro e, em alguns casos, ao Palácio do Planalto.

O COE poderia ter tido, por exemplo, um papel relevante na estratégia de compra de vacinas. Segundo fontes da pasta, se os técnicos tivessem sido ouvidos, certamente o governo federal não teria apostado todas as suas fichas no imunizante de Oxford. Da mesma forma, também poderia ter sido evitado o caos com a falta de oxigênio em Manaus.

Foi a partir dessas mudanças, em meados de 2020, que a circulação de informações entre as diferentes secretarias da pasta começou a escassear, relatam técnicos. Na mesma época, foram extintas as entrevistas protagonizadas pelo titular da Saúde ao lado de outros ministros na sede da Presidência.

Queiroga chegou ao posto demonstrando uma disposição maior de falar com a imprensa. Ele tem sido solícito com jornalistas à porta do ministério e já participou de duas entrevistas coletivas no Planalto: uma para se apresentar e outra para apresentar uma vacina brasileira que vem sendo desenvolvida na USP de Ribeirão Preto.

Porém, algumas de suas primeiras manifestações públicas preocuparam servidores da Saúde. O ministro já falou em “continuidade” e disse que “a política é do governo Bolsonaro, o ministério executa”. Essa última declaração em especial preocupa os servidores.

“Para ser alguém que retomasse a confiança dentro do ministério, teria que se posicionar contra o presidente. Isso não vai acontecer”, disse um técnico da Saúde.

Se técnicos tivessem sido ouvidos, governo não teria apostado todas as fichas em uma só vacina para a covid

Queiroga apresentou-se ontem aos funcionários da pasta em uma teleconferência, falando de um auditório na sede do ministério. Ali, sinalizou que manterá dois secretários que, embora médicos, são tidos como ideológicos.

Um deles é Helio Angotti Netto, médico pró-cloroquina e admirador do escritor Olavo de Carvalho indicado por Pazuello para a Secretaria de Ciência, Tecnologia, Inovação e Insumos Estratégicos (SCTIE).

Recentemente, Angotti fez parte da comitiva que foi a Israel em missão liderada pelo agora ex-chanceler Ernesto Araújo. A viagem não teve nenhum resultado prático e chamou a atenção mais pela bronca que Araújo levou ao microfone um evento em Jerusalém por estar sem máscara ao aproximar-se do chanceler Gabi Ashkenazi.

 

Queiroga deve manter também Raphael Parente, famoso por suas posições contrárias ao aborto, à frente da Secretaria de Atenção Primária à Saúde (SAPS).

Técnicos da Saúde relatam que, por causa do viés ideológico da pasta, houve uma paralisia de ações como compra de lubrificantes e campanhas voltadas para a população trans ou profissionais do sexo. É como se essas questões simplesmente não existissem.

Nesse sentido, há preocupações sobre se Queiroga poderá dar autonomia ao seus subordinados e se conseguirá blindá-los em eventuais decisões que contrariem Bolsonaro. Os precedentes são abundantes e provocaram uma perda significativa de alguns dos melhores quadros do ministério.

Um exemplo de fuga de cérebros da pasta é o de Sonia Brito, especialista em saúde pública pela Fiocruz, mestre em saúde coletiva em epidemiologia. Ela pediu desligamento à época da troca de Luiz Henrique Mandetta por Nelson Teich, após mais de uma década na pasta. Procurada pelo Valor, ela não quis se pronunciar. Disse apenas que sobre a situação do país na pandemia que “é muito triste o que está acontecendo”. Desiludida, mudou-se para o Uruguai.

Mais um caso célebre de interferência política na pasta foi a demissão, em setembro passado, da coordenadora-geral de Saúde do Trabalhador, Karla Baeta, e do coordenador do Departamento de Saúde do Trabalhador, Marcus Quito. Eles foram exonerados por Pazuello após emitirem uma nota técnica que incluiu a covid-19 na lista de doenças relacionadas ao trabalho. O ato foi revogado.

Três meses antes, Pazuello havia exonerado os autores de outra nota técnica, que recomendava a continuidade, na pandemia, dos serviços que garantem acesso a métodos contraceptivos de emergência e ao aborto permitido em lei. Bolsonaro reclamou nas redes sociais.

Outro que deixou a pasta por divergências foi Julio Croda, ex-diretor do Departamento de Imunização e Doenças Transmissíveis. Ele saiu ainda na gestão Mandetta, em março de 2020. O estopim foi a publicação de uma portaria com instruções sobre a adoção de medidas de restrição. Mas foi podado por uma ordem que veio do Planalto.

“Houve uma clara mensagem da Presidência que não apoiava esse tipo de recomendação”, disse Croda ao Valor.

Para ele, é positivo que Queiroga tenha defendido o uso de máscaras e o distanciamento social logo em suas primeiras aparições.

“Esse é o ponto que talvez tenha a maior divergência entre a ciência e o governo. A questão é se Queiroga vai conseguir apoiar, ou não atrapalhar, municípios e Estados nas medidas restritivas”, disse.

Para ele, o Comitê Nacional de Enfrentamento à Pandemia, criado por decreto presidencial e com a participação do Congresso, pode servir de apoio para que a pasta siga a ciência. Mas pondera que ainda é preciso ver se será possível “evitar que o presidente se coloque contra essas medidas mais técnicas e científicas que são necessárias no momento do colapso”.

Croda define a gestão do Pazuello como “uma gestão do presidente, não do Pazuello”. “Ele não tinha capacidade de decisão. Então, seguia muito o que era a decisão tomada pelo presidente”, afirmou

Assim como outras fontes ouvidas pelo Valor, Croda acredita que a falta de uma orientação clara das autoridades confundiu a população, provocando uma resistência a medidas restritivas. Isso favoreceu aglomerações que criaram o ambiente propício para o surgimento de novas variantes do coronavírus.

“Quanto maior a transmissão, maior a mutação e maior a chance de novas variantes”, afirma.

Para Croda, essa ideologização do ministério em meio a um momento tão grave gerou um desestímulo enorme entre os técnicos. “

“Quando você é obrigado a fazer uma nota técnica, a fazer reunião para recomendar o que o mundo todo não recomenda, isso é bastante frustrante para quem trabalha com saúde pública”, afirmou.

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Ministro defende uso racional de oxigênio

Natália Cancian

Raquel Lopes

30/03/2021

 

 

Ministério prepara regras para tentar economizar uso de oxigênio nos hospitais

Em meio à escassez de oxigênio em algumas regiões do país, o ministro Marcelo Queiroga disse que pretende fazer uma campanha junto a profissionais de saúde para que haja uso “racional” do insumo em pacientes com covid-19.

Ele disse que convidou Carlos Carvalho, professor de cardiopneumologia da Universidade de São Paulo, para trabalhar com o ministério em protocolos assistenciais, entre eles o de racionalizar o oxigênio. “Todos sabemos que muitas pessoas chegam aos hospitais, e aí, às vezes, a primeira providência é colocar o oxigênio nasal em quem não precisa de oxigênio. Então, vamos tentar economizar. Vamos fazer uma grande campanha junto aos profissionais de saúde para o uso racional do oxigênio”, disse ele ontem em audiência no Senado, a primeira no Congresso desde que ele assumiu o cargo.

Queiroga disse que o ministério trará 13 caminhões-tanque do Canadá para ajudar no transporte de oxigênio entre Estados. “O principal problema é levar o oxigênio até o destino. Esse oxigênio geralmente é levado em caminhões, caminhões-tanques. A capacidade do Brasil de caminhões não é elevada, é a capacidade que existe para suprir o mercado brasileiro em condições normais, não é a capacidade para suprir o Brasil numa condição pandêmica”, disse.